21 dezembro, 2014

OS MAIS BELOS CAMINHOS DE FERRO (E Outras Estórias Sobre Carris) #3 - UM CAPRICHO DOS DEUSES



É no que acredito: quando criou o mundo, Deus deixou a Noruega para o fim. Foi o seu capricho. Achou-se no direito e eu também (afinal de contas, quem lho negaria?!). É possível que depois da Noruega tenha tido vontade de outras pertinácias semelhantes. Talvez a Nova Zelândia – que não sabendo onde a colocar, a fez ilha e longe de tudo. Não sei. Nunca lá pus um pé mas acredito que assim possa ser, tal as descrições que de lá chegam. 
À Noruega, o que lhe retirou em luz, amenidade e sol, retribuiu em paisagem. Experimentou os fiordes – cravando os dedos afastados sobre a terra e arrastando-a, de unhas vincadas, para o meio do oceano como uma criança abrindo buracos na areia da praia. E fez isso por toda a costa. Um trabalho minuciosos, com dedinhos de menino, rendilhando a Noruega como quem tece a ilharga de um vestido.

Pouco menos de um mês antes, em plena gare do Oriente, comprava um passe de Inter Rail de três dias apenas para aquele país. Uma coisa expedita, tirado na mesma fila de quem comprava bilhete para a Pampilhosa ou para o Bombarral. Uma coisa apática, sem paixão, que me deixava ansioso pelo simples facto de haver quem esperasse atrás de mim, com aquela pressa citadina de soslaio, vez para comprar o seu ingresso para um destino bem mais perto, contrastando com o meu entusiasmo e sorriso pateta. Não era a primeira vez que comprava um passe de InterRail, mas havia sempre algo mais naquele bilhete que o tornava especial, que o queria vendido de forma especial – fosse lá isso como fosse –, mas não foi o caso. Voltaria à Noruega propositadamente para percorrer três linhas por muitos consideradas como das mais belas do mundo: Rauma Railway, Bergen Railway e Flam Railway.

Estou há três dias na estrada. Mal deixei o comboio em Murmansk (na Rússia), anteontem, estendi o polegar e fiz-me à sorte. Pretendia chegar à Finlândia, cruzar para a Suécia e daí para Trondheim sempre à boleia.
Estamos em Agosto mas por estas paragens o frio é cortante. Visto o polar e fecho o casaco até ao limite enterrando dentro dele o queixo até ao nariz. Deponho a mochila aos pés. A última boleia deixou-me em Enafors, precisamente no cruzamento da estrada que leva à Noruega com o caminho que dá para a estação, onde em último recurso, posso sempre apanhar o comboio. Já lá vai um bom bocado e não é por falta de matrículas norueguesas que ainda aqui estou. Todas me ignoram. Inclusive a do jipe que acabaria por me tirar dali, que, num impulso de generosidade – acredito eu –, fez meia volta bem para lá da curva e da vista onde me encontro, e regressou para me levar. Definitivamente até Trondheim.

Dias depois em Dombås (o ‘å’ lesse ‘o’), uma chuva miudinha marca a espera do comboio. Há um verde alpino em redor da estação, campos de cultivo a oeste e uma montanha coberta de pinheiros a oriente.
A Rauma Railway liga Dombås – a meio caminho entre Oslo e Trondheim – a Åndalsnes, ao longo do vale Romsdalen, numa sucessão de 32 pontes e seis túneis, incluindo os 1340 metros de túnel em ‘ferradura’ de Stavem.
É um comboio ordinário pensado para o turismo: confortável, ar condicionado, grandes janelas panorâmicas e um guia electrónico que acompanha a paisagem com as devidas explicações. As informações são dadas em norueguês, inglês e alemão, e o revisor de serviço encarrega-se ainda de distribuir um desdobrável descrevendo os pontos altos do trajecto. Simples e eficiente! Um modelo elementar que funcionaria na perfeição no Douro ou no Tua.



O comboio parte. A chuva deu lugar ao nevoeiro. Cobre as montanhas nos calcanhares de um deslumbrante tapete verde estendido até aos rios que descem o vale, como se tudo não passasse de um jardim imenso. Quem foi que estendeu este tapete verde?.. Aqui e ali casas de madeira, parecem módulos, telhados inclinados negros – um ou outro ajardinado –, vermelhas escuras como papoilas. Ao fundo, por entre o nevoeiro, as montanhas marcam a paisagem e a passagem do comboio. Os picos, erguendo-se acima do nevoeiro, são de neves permanentes ou de um verde seco. Pequenas linhas de água descem vertiginosamente das suas encostas em direcção aos rios e aos lagos – como o lago Lesjaskogsvatnet, entre Lesjaverk e Lesjaskog, baixo e cristalino, de uma pureza do princípio dos tempos. Em Bjorli vêem-se pistas de esqui. Há uma luz e uma humidade que é como se o dia nunca deixasse aquele momento de crepúsculo matinal. 
Vou saltando de um lado para o outro do comboio em função das vistas. Invejo o privilégio do maquinista, sentado na sua poltrona com todo este cenário à sua frente, como se estivesse na cabine de um jogo animado. 
Há lenha empilhada ao longo do caminho. Da janela correm pinheiros, pinheiros, pinheiros, pinheiros…
À saída de Bjorli o comboio acompanha do rio Rauma. Tem uma cor verde transparente, esmeralda, típica de documentário matinal de domingo sobre a vida selvagem. Daqueles que transmitem frio, mas que dão vontade de ver no inverno sob o aconchego da manta axadrezada. Apetece beber. A paisagem é fabulosa! O rio em ziguezague – caindo em cascatas –, as montanhas cobertas de pinheiros, rochas e musgos. Casinhas aqui e acolá ao longo do vale cavado.
Aproximamo-nos de Verma. Do alto, à entrada do túnel de Stavem, avista-se lá em baixo a ponte em arco e em curva sobre o Rauma. O comboio imerge na montanha. Serpenteia no seu interior dando uma volta de 180 graus de forma a vencer o desnível, descer à outra margem e voltar à companhia do rio. Um rio de salmões; de encostas polidas; de margens de campos de embrulhos de palha envoltos em plásticos brancos como cilindros; de vertentes escarpadas pingando água. Um rio liso, que não parece ter mais de um palmo de profundidade, como se fosse um lençol.

A paisagem é indescritível. Assoma-se à memória um excerto de Miguel Torga quando se referia ao Douro num dos seus diários:
Não desejo ao meu maior inimigo, a incapacidade expressiva que se apodera de mim diante de certas paisagens do mundo.”
Tal como ao Miguel – perdoem-me a estreiteza do trato – também eu me sinto impotente e incapaz de descrever com clareza e objectividade, toda a dimensão da paisagem que me envolve… Poucas terão sido as vezes em que me senti tão absorvido pela paisagem como aqui. Tenho o sério receio que depois da viagem por esta linha incrível, mais nenhuma me encha as medidas. (E eu que amava o Douro…)

O comboio prossegue. Retenho-me à direita. No mesmo flanco que o rio. (O rio! Meu deus, o rio!..) Há uma casa entalada entre a montanha e o Rauma. Não tem nada de especial. É só uma casa. O que a torna singular é a envolvência. A arriba vertical que a enquadra, o palco verde onde está montada e a ponte por onde se lhe acesa. Parece cenário de trolls ou hobbits do Senhor dos Anéis.
Dou-me conta de uma certa solidão.
Onde é que tu estás? Esta não é viagem para se fazer sozinho, até porque contado ninguém acredita. Tem de ser partilhado. É preciso ver o sorriso, o assombro e a admiração estampados no rosto alheio de forma a compreendermos o nosso.
Mais montanha. Paredes de escalada com mais de mil metros. E ainda o rio. Sempre o rio. Sempre translúcido e cheio de pedrinhas.

 

Por fim Åndalsnes.
Há uma velha carruagem transformada em capela ao lado da estação. O rio não é mais rio. É-o no feminino. Um fiorde. O espelho das montanhas que o cercam por todo o lado. Sinto-me incrédulo perante esta paisagem impossível e fico assim, debruçado sobre o varandim ao largo do porto, todo o tempo que demora o regresso. Um cheiro a mar, a algas. As gaivotas no cimo dos mastros dos pequenos veleiros estacionados na pequena marina; à tona da água, baloiçando como patinhos de borracha. Vejo golfinhos, ou baleias – devem ser baleias –, num silêncio raramente interrompido pelo motor dos carros na estrada distante que serpenteia o fiorde. O sol aparece. Reveste as cores e a paisagem de cromado.
Voltarei para trás e tudo se repetirá como um filme que se vê duas vezes; como um presente repetido que se gosta de receber.