02 outubro, 2011

Direcção:.. Sul!


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À chegada ao Cabo Norte o vento é fortíssimo. Apesar das boas temperaturas que se têm registado nos últimos dias, este vendaval parece querer lembrar que este é o ponto mais próximo do Pólo Norte ao qual se pode chegar por via terrestre, ainda que este Cabo Norte fique numa ilha (Magerøya), ligada à não muito tempo ao continente por um túnel de quase 7Km perfurado sob o mar.
Tiro algumas fotos no local mas as atracções esgotam-se no simbolismo do local. É altura de procurar um sítio para montar a tenda. Há muito que tenho em mente um local com vista para o verdadeiro ‘ponto mais norte da Europa’ – Knivskjellodden, um promontório 1500 metros mais a norte que o Cabo Norte mas de acesso difícil e que forma com este um belo fiorde. Enquanto isto sou interpelado por um alemão de bicicleta que me pergunta se ali cheguei a pé. Respondo que não, enquanto ele confirma ter ali chegado de bicicleta desde a Alemanha. Tenciona igualmente montar tenda e acampar por aqui. Uma vez mais, a minha ideia de que é praticamente impossível estar sozinho quando se viaja sozinho, confirma-se…
Não é fácil montar a tenda com este vento!..
Tendo-o conseguido, sentamo-nos a contemplar o pôr-do-sol e ele reparte comigo o seu jantar, uma vez que eu não arranjei nada para esta noite. Falamos de viagens e ele mostra grande admiração pelo projecto que me proponho levar a cabo.
Não há muito mais que fazer por aqui. A noite cai e o frio aumenta, pelo que decidimos recolher à tenda… amanhã é dia de rumar a Karasjok.
Em Karasjok fico no parque de campismo. Pouco depois de montar a tenda conheço Roland, um alemão de 68 anos, cozinheiro reformado, mas que sempre passou a vida a viajar.
À noite partilhamos a mesa de jantar e ele revela-me algumas curiosidades da sua vida.
Roland é o mais novo de dois irmãos com uma diferença de idades de 10 anos. Nunca teve carro ou pagou casa. Como cozinheiro de hotel, conseguia um quarto no último andar do prédio e isso bastava-lhe. Trabalhou sempre para viajar!
O seu pai serviu na 2ª Guerra Mundial como transportador de radar, o que lhe conferiu prioridade máxima a quando da retirada dos alemães. Contudo, foi capturado pelos americanos e feito prisioneiro de guerra em França durante 3 anos, sendo libertado apenas em 1948, regressando à sua terra natal, na fronteira entre a Suiça e França, tinha Roland 5 anos.
A conversa centra-se uma vez mais nas incidências da guerra. Roland conta-me que aquando da retirada alemã, tudo por aqui foi destruído para que nada restasse para os russos. Karasjok como outras cidades do norte da Escandinávia – Rovaniemi na Finlândia é outro bom exemplo – foram totalmente incendiadas.
- Nem um telefone deixaram! – Comentou mais tarde comigo um jornalista Sami que me deu boleia até à fronteira.
Já na Finlândia, e tendo chegado tarde à Reserva Natura do Kevo, hoje só farei 15km, o suficiente para entrar bem dentro da reserva e avistar renas e lagos enormes, aperceber-me do Outono que aqui chega mais cedo pintando o cenário de cores amarelo e vermelho… e um silêncio indescritível…
São 7 da tarde e o ideal é montar acampamento. Cheguei junto a um lago onde já se encontra alguém a tirar fotografias e que me parece que também vai pernoitar por aqui. Chama-se Piotr e é polaco. Esta é a sua 13ª vez na Finlândia. Revela-se um amante da Lapónia, um caminhante experiente e além disso um excelente conversador. Teve planos para elaborar um guia da Lapónia, mas as constantes visitas apenas o fizeram ter a certeza de que quanto menos turismo, melhor será para a preservação da região.
Tendo planeado passar 3 semanas no parque, trouxe imensa coisa consigo, mas os planos mudaram e neste momento tem comida a mais pelo que resolvemos partilhar o que temos. Depois do chá, Piotr faz uma sopa com carne de porco tipo goulash que está verdadeiramente deliciosa…
Após o jantar, mais chá e boa conversa à fogueira. A noite vai caindo e o céu está estrelado, revelando boas perspectivas para o dia seguinte… Mas não só! Com um céu assim e apesar de ainda estarmos no início do mês de Setembro, é possível com alguma sorte, contemplar auroras boreais. O Piotr acha difícil por ainda ser relativamente cedo para isso. Não me fico e aponto o céu indicando aquilo que me parece ser uma, ainda que muito fraquinha. Diz-me que não. Que deve ser uma nuvem. Mas nesse exacto momento o espectáculo tem início! Ondas e cortinas de uma cor verde pálida, numa dança que nos faz sentir como que esmagados e nos deixa perplexos.
A visão estende-se por horas. Umas vezes fraca, outras mais forte… O meu companheiro de conversa apesar de não ser a primeira vez que tem o privilégio de contemplar tal fenómeno, mostra-se tão assombrado quanto eu e, de olhos postos nas estrelas, as nossas expressões de admiração dão conta disso mesmo.
O Piotr explica-me que o fenómeno tem origem na colisão de partículas solares com gases que pairam nas camadas altas da atmosfera. Como nos pólos o magnetismo da terra é menor, é como se essas partículas fosses puxadas para essas zonas e o choque acontece, proporcionando tão espantosa visão.
Os dois dias seguintes são passados no trilho, com paisagens deslumbrantes e alguma chuva à mistura… tenho sofá à minha espera em Rovaniemi, pelo que não é conveniente atrasar-me. Mas para lá chegar tenho ainda de conseguir boleia quando sair da reserva.
Nunca antes tinha andado à boleia sozinho. No início a ideia era um pouco estranha, mesmo que desde sempre tenha pensado faze-lo aqui por me parecer seguro e o custo das deslocações ser exagerado para quem se propõem gastar apenas 5 cêntimos por quilómetro em viagens. Na verdade revelou-se uma experiência fantástica. Conheci pessoas que certamente não mais encontrarei mas que se predispuseram a ajudar-me mesmo que em alguns dos casos, a língua fosse um obstáculo a qualquer tentativa de conversa. Tanto na Noruega como na Finlândia, exceptuando uma ou duas vezes, o tempo de espera nunca foi superior a 15 minutos e muitas vezes aconteceu conseguir boleia no carro de alguém já com alguma idade, que mesmo não falando inglês, mostraram sempre um enorme sentido de generosidade, como foi exemplo um senhor finlandês, que no dia em que me deslocava de Inari para Rovaniemi, ter-me-á visto pedir boleia talvez umas duas vezes – em sítios diferentes – antes de parar. Quando o fez, apressou-se a arrumar o banco do carro para meu conforto e a oferecer-me não só a fruta que trazia consigo, como o café que fez questão de pagar quando paramos numa área de serviço. E no entanto, não trocamos mais que meia dúzia de palavras o caminho todo…
Por recomendação do Jim, em Rovaniemi a minha anfitriã seria Taina. Na verdade, a Taina e o Jim tornaram-se amigos por muitas das vezes receberem as mesmas pessoas em suas casas e eu não sou excepção. Tal como o Jim, Taina recebe imensos hóspedes no contexto do CS, como o provam os dois cadernos de visita que me mostra e ‘obriga’ a assinar.
Taina é mãe de 9 filhos e uma dona de casa que não se nega aos trabalhos mais duros que a vida na floresta obriga. Pela manhã, via-a sempre calçando botins e vestindo luvas e casaco grosso para as tarefas no exterior; como cortar lenha, desfazer um galinheiro obsoleto ou preparar o sistema de aquecimento da casa.
Quando cheguei estava na companhia de Alain, um norueguês – amigo da família – que venho a saber pouco depois, já correu mundo, muitas vezes a pé e sem dinheiro.
Alain vive habitualmente junto ao Cabo Norte, na casa de uma das pessoas que o ajudaram quando em 2010 resolveu fazer a pé, em pleno Inverno e com temperaturas de menos 30ºC, o percurso entre Helsínquia e o Cabo Norte. Não tem casa própria e a roupa que traz vestida foi-lhe oferecida por pessoas com quem se cruzou ao longo do caminho. Não tem nada mas tem amigos em todo o mundo! Aliás, no site sobre a sua viagem de volta ao mundo para festejar duas vezes a passagem para o novo milénio – na Rússia e no Alasca – faz saber precisamente que a sua casa é o mundo…
Alain está aqui para trabalhar e ajudar a família. Na verdade é uma espécie de troca de favores. Pelas duas semanas de trabalho que aqui presta, não reivindicada salário, apenas cama, comida e roupa.
Em casa da família Saarijärvi já só vivem os filhos mais novos. Não tenho a percepção da idade de cada um mas os dois mais novos não têm mais de 8 anos. Minutos depois de estar na sua companhia, sou convidado para me juntar à brincadeira e não tarda nada a até que me ponham a puxa-los pelo corredor, sentados sobre um cobertor, tal fosse um trenó a deslizar na neve. Inventam mil e uma formas de andar sobre ele; ora um de cada vez, ora os dois juntos, ora saltando para cima do cobertor em andamento como se tratasse de uma prancha de skiming… deixam-me completamente cansado mas de alma preenchida.
Depois do jantar, Taina chama toda a gente para a sauna; primeiro os miúdos, depois ela e as filhas e por fim os homens.
A sauna na Finlândia é uma verdadeira instituição e os finlandeses gabam-se de ter a sauna mais quente do mundo. Quando Taina me mostra o seu interior e me explica todos os procedimentos, verifico no termómetro estarem uns 100ºC…
A sauna é a efectiva forma de limpeza do corpo e tem lugar dia sim, dia não. Deve começar-se com um breve duche antes de entrar e uma vez lá dentro, há uma pequena vasilha de estanho com água que é atirada sobre as pedras que cobrem a salamandra, provocando uma onda de mais calor ainda. Os homens fazem isto em duas ou três séries, intervalando com cerveja no exterior da habitação e se possível rebolando na neve, quando a há.
Taina convida-me a experimentar e eu junto-me aos homens no interior da sauna. Nunca na vida havia sentido tanto calor! Não há poro do meu corpo que não liberte suor e quando a água é arremessada sobre as pedras, tenho a sensação de sufocar… nos intervalos, sentamo-nos no exterior, mesmo que com chuva, partilhado dois dedos de conversa ao sabor da cerveja local.
No dia em que me despeço da família, também Alain se prepara para regressar á Noruega. Taina e uma das filhas vão leva-lo de volta a casa aproveitando o fim-de-semana fora para uma pescaria, mesmo que as previsões meteorológicas apontem para tempestades de vento na ordem dos 50 nós. Quando me despeço de Alain, fica a promessa:
- Até qualquer dia! Algures no caminho…
De Rovaniemi a Oulu é um pulinho. Bastaram 5 minutos de espera e a boleia que consigo leva-me directamente até ao meu destino.
Pekka, o cientista que me hospeda em sua casa, reside cá por força do trabalho. Ele e a namorada construíram recentemente uma moradia junto a um dos muitos lagos da Finlândia. As imagens que me mostra em pleno Inverno, com o lago congelado e tudo coberto de neve, são autênticos postais da Lapónia. No entanto, vai passando os seus dias no seu rés-do-chão de não mais de 30 metros quadrados, do mais simpático que se pode encontrar. O suficiente para si, diz-me. E ainda acha ter espaço para fazer uma sauna…
Pekka é um tipo divertidíssimo e de trato fácil. Durante o tempo que passei em sua casa, sabendo ele do meu gosto pelo mundo enológico, fez um esforço por me dar a conhecer alguns dos melhores licores e cervejas da Finlândia. O mais estranho nasce da vontade do produtor ‘mais a norte da Lapónia’, como o mesmo faz questão de publicitar no rótulo. Tem um sabor estranho a madeira queimada e ao abrir a garrafa, tenho a sensação de que o ar se enche de fumo… Mesmo estando um pouco ocupado nesses dias, Pekka confia-me a chave de sua casa durante todo o tempo em que lá me encontro. Por vezes, tenho a impressão que há pessoas que mesmo que nunca se tenham cruzado connosco, são nossos amigos desde sempre…

1 comentário:

  1. Belas histórias! Devias arranjar forma de partilharmos o post no facebook e não apenas o blog. Força!

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