Para lá da formosa sobreira ficam as oliveiras.
Faz frio, depois de dias de propaganda veraneante, mas
ainda não é desta que o Estio vem para ficar – ele que ao que parecem, este ano
nem sequer vem…
Estão rosadinhas, as faces destas de quem viemos à
procura. Diz-se por aí que o tempo delas já foi, que estão a dar as últimas,
mas a mim parecem-me as mais belas da aldeia. A vontade de lhes pôr a mão desperta
só de as ver. Uma fome imensa de as libar. De sentir aquele sabor... Apesar do
tempo – que se nota ter passado por elas – estão firmes e apetitosas…
Contenho o meu desejo mas prometo regressar ao final do
dia.
Descemos
o pequeno vale. Da ponte, a ribeira da Fróia encontra-se com a de Penafalcão, e
assim se perdem para lá dos montes para onde seguimos.
Procuramos
o Marcelino entre o mato. O caminho é um jardim florido de ´campainhas’ roxas e
pétalas brancas, amarelas e azuis. Um odor intenso à esteva, que agora se despe
de vaidades, perfuma o ar da manhã.
O Marcelino
parece estar a cada curva, depois de cada pinheiro, mas é como uma miragem… só
o ribeiro lá em baixo volta a ser prenúncio da sua presença. Memorias de uma
velha serração do outro lado do vale e por fim se avistam os primeiros telhados
comidos pela vegetação.
O Marcelino
é uma aldeia fantasma, de pedras abandonadas ao seu encanto e ao encanto da sua ruína Não é difícil perceber porque se encontra deixada, uma vez que para aqui
chegar foi preciso bem mais que uma hora de caminho. Talvez o seu feitiço
esteja no seu abandono: no ribeiro que a cruza afoito e esculpe a rocha por
onde passa, na velha ponte que o atravessa, nos salgueiros de pés na água, nas encostas
que a afunilam, na dança de luz e sombra que acaricia o vale, na vegetação que
entrou sem bater e escancarou portas e janelas…
Apetece
ficar, mas ainda há muito que correr e elas esperam-nos no caminho.
Subimos
ao Monte Barbo e eis que elas lá estão à nossa espera! Desta vez não há quem
resista e atiramo-nos demoradamente nos seus braços. Prometem fazer-nos
companhia até final e que o melhor está ainda para vir…
Seguimos
em direcção aos Montes da Senhora de que ninguém sabe o nome. O senhor João encontra-se
no campo nas suas lides;
- Onde
é que se bebe aqui um copinho de vinho? – Pergunta o Luís como quem não quer a
coisa.
- Aqui,
só se for ali no café dos Montes. – Responde o senhor João.
- É
pá! O que nós queríamos mesmo era provar aí o vinho de alguém para acompanhar
com uns rissóis que trazemos aqui na mochila. – Insiste o Luís como quem diz: “abra-nos
lá a porta da sua adega”.
- Venham
daí então!
Atravessamos
o quintal de nêsperas, ginjas, figos e um sem número de outros frutos e
vegetais até um pequeno edifício mal acabado e ensombrado por uma latada de
morangueiro. De rabo no mocho, afiamos conversa com o senhor João. Trabalhou na
Sotima durante anos. Conhecia aquela
fábrica como ninguém e por entre rissóis e uns copinhos de vinho – que enche
até transbordar – lamenta o triste desenredo daquela que foi durante anos a
maior empregadora do concelho de Proença-a-Nova.
Deixamos
o senhor João a caminho do seu almoço e continuamos com destino aos Montes. Há neste
largo da igreja, qualquer coisa de apaziguador. Uma sensação de ordem, de escala.
De praça coroada pelo objecto arquitectónico da igreja. De ponto de encontro. De
harmonia. É esta a alma dos espaços, e nunca como a mão assertiva da chamada ‘arquitectura
popular’, para o fazer com mestria.
Dos Montes
da Senhora prosseguimos para a Catraia Cimeira e subimos às Vendas. Fizeram-nos
companhia até agora, mas é aqui, à entrada da aldeia, depois de nos desviarem
da estrada principal para uma entrada de campo escondida de outros olhares, que
se despem de qualquer pudor… grandes, escuras e apetitosas, metemos mão à
melhor cereja que vimos até agora pelo caminho. Parecemos putos a roubar fruta:
é uma no bolso, outra na boca. Os ramos pendem sob o seu peso. Estão tão
maduras que a sua apanha foi desprezada e nós contentes, enchemos a algibeira.
Cursamos
para os Vales com uma barrigada de riso e cerejas. É hora de mais uma sandes e
voltamos a perguntar onde se bebe o melhor vinho da aldeia:
- Aqui
não há nada. Querem que lhes sirva um copinho? – Perguntam-nos do alto da escadaria.
Sentados
no primeiro degrau, desfiamos conversa com a senhora Maria e o senhor Manuel,
um casal de idade avançada mas que nos confessa a tenacidade com que se agarram
à vida e um ao outro.
- Já
tive dois AVC’s mas continuo aqui. – Diz-nos o senhor Manuel.
- Há
quantos anos estão juntos? Deviam ser um casal muito bonito. – Atira o Luís.
- Eramos
dois cravos! – Responde a senhora Maria entre sorrisos cúmplices com o seu companheiro
de vida.
Há nesta
comunhão de afectos, qualquer coisa de gratificante. De sentido. De razão… de
esperança…
Deixamos
a porta destes dois cravos e rumamos
de volta à aldeia das Oliveiras, mas o encontro com o senhor Francisco, cem
metros depois, devolve-nos ao aconchego da adega.
- Mas
onde é que tu vais homem?! – Exclama a senhora Lucília, apreensiva com o marido
que vai abrir a porta de casa a três estranhos.
Colho
dois cravos da sua floreira e desço a rua para os oferecer à senhora Maria. O Luís
e a Yola já perscrutaram a opacidade da adega do senhor Francisco e conquistaram
a confiança da senhora Lucília quando me junto a eles para partilhar um último
naco de conversa antes do regresso que se faz tarde.
Homens
de luta! Da luta da vida e das armas. Homens de juventude expatriada numa guerra
que não era deles. Que têm de fazer pela vida num país que não é o deles… depois
da guerra em terras africanas e de anos emigrado em França, o senhor Francisco
está de volta à terra. Para além das uvas, tem também azeitona e antes de nos
despedirmos, lança uma proposta ao Luís:
- Você
quer vir apanhá-las? – Pergunta. – Eu só quero 50 litros, o resto é para si.
Caminhamos
de volta à Aldeia das Oliveiras, cruzando ainda Penafalcão e mais umas quantas
cerejas que somos incapazes de evitar.
Quaisquer
cem metros podem ser uma viagem!
Se aquilo
que importa é o encontro e a partilham, não há nada como estes pequenos
momentos em que, no bunker improvisado
destes homens de mãos gastas pelo trabalho árduo da terra, me sinto a viajar
para mundos que não o meu. Como se cada encontro ocasional fosse uma fronteira
que se transpõe. Um novo país que se visita… julgo que o Homem mais viajando
não é aquele que mais carimbos coleccionou no passaporte, mas sim aquele que
mais abraços e sorrisos resgatou para si de cada vez que pisou o passeio da rua
onde mora.
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