18 julho, 2013

Eram Dois Cravos

            Para lá da formosa sobreira ficam as oliveiras.
         Faz frio, depois de dias de propaganda veraneante, mas ainda não é desta que o Estio vem para ficar – ele que ao que parecem, este ano nem sequer vem…
          Estão rosadinhas, as faces destas de quem viemos à procura. Diz-se por aí que o tempo delas já foi, que estão a dar as últimas, mas a mim parecem-me as mais belas da aldeia. A vontade de lhes pôr a mão desperta só de as ver. Uma fome imensa de as libar. De sentir aquele sabor... Apesar do tempo – que se nota ter passado por elas – estão firmes e apetitosas…
            Contenho o meu desejo mas prometo regressar ao final do dia.
Descemos o pequeno vale. Da ponte, a ribeira da Fróia encontra-se com a de Penafalcão, e assim se perdem para lá dos montes para onde seguimos.
            Procuramos o Marcelino entre o mato. O caminho é um jardim florido de ´campainhas’ roxas e pétalas brancas, amarelas e azuis. Um odor intenso à esteva, que agora se despe de vaidades, perfuma o ar da manhã.


O Marcelino parece estar a cada curva, depois de cada pinheiro, mas é como uma miragem… só o ribeiro lá em baixo volta a ser prenúncio da sua presença. Memorias de uma velha serração do outro lado do vale e por fim se avistam os primeiros telhados comidos pela vegetação.
O Marcelino é uma aldeia fantasma, de pedras abandonadas ao seu encanto e ao encanto da sua ruína  Não é difícil perceber porque se encontra deixada, uma vez que para aqui chegar foi preciso bem mais que uma hora de caminho. Talvez o seu feitiço esteja no seu abandono: no ribeiro que a cruza afoito e esculpe a rocha por onde passa, na velha ponte que o atravessa, nos salgueiros de pés na água, nas encostas que a afunilam, na dança de luz e sombra que acaricia o vale, na vegetação que entrou sem bater e escancarou portas e janelas…
Apetece ficar, mas ainda há muito que correr e elas esperam-nos no caminho.
Subimos ao Monte Barbo e eis que elas lá estão à nossa espera! Desta vez não há quem resista e atiramo-nos demoradamente nos seus braços. Prometem fazer-nos companhia até final e que o melhor está ainda para vir…


Seguimos em direcção aos Montes da Senhora de que ninguém sabe o nome. O senhor João encontra-se no campo nas suas lides;
- Onde é que se bebe aqui um copinho de vinho? – Pergunta o Luís como quem não quer a coisa.
- Aqui, só se for ali no café dos Montes. – Responde o senhor João.
- É pá! O que nós queríamos mesmo era provar aí o vinho de alguém para acompanhar com uns rissóis que trazemos aqui na mochila. – Insiste o Luís como quem diz: “abra-nos lá a porta da sua adega”.
- Venham daí então!
Atravessamos o quintal de nêsperas, ginjas, figos e um sem número de outros frutos e vegetais até um pequeno edifício mal acabado e ensombrado por uma latada de morangueiro. De rabo no mocho, afiamos conversa com o senhor João. Trabalhou na Sotima durante anos. Conhecia aquela fábrica como ninguém e por entre rissóis e uns copinhos de vinho – que enche até transbordar – lamenta o triste desenredo daquela que foi durante anos a maior empregadora do concelho de Proença-a-Nova.

 Deixamos o senhor João a caminho do seu almoço e continuamos com destino aos Montes. Há neste largo da igreja, qualquer coisa de apaziguador. Uma sensação de ordem, de escala. De praça coroada pelo objecto arquitectónico da igreja. De ponto de encontro. De harmonia. É esta a alma dos espaços, e nunca como a mão assertiva da chamada ‘arquitectura popular’, para o fazer com mestria.
Dos Montes da Senhora prosseguimos para a Catraia Cimeira e subimos às Vendas. Fizeram-nos companhia até agora, mas é aqui, à entrada da aldeia, depois de nos desviarem da estrada principal para uma entrada de campo escondida de outros olhares, que se despem de qualquer pudor… grandes, escuras e apetitosas, metemos mão à melhor cereja que vimos até agora pelo caminho. Parecemos putos a roubar fruta: é uma no bolso, outra na boca. Os ramos pendem sob o seu peso. Estão tão maduras que a sua apanha foi desprezada e nós contentes, enchemos a algibeira.


Cursamos para os Vales com uma barrigada de riso e cerejas. É hora de mais uma sandes e voltamos a perguntar onde se bebe o melhor vinho da aldeia:
- Aqui não há nada. Querem que lhes sirva um copinho? – Perguntam-nos do alto da escadaria.
Sentados no primeiro degrau, desfiamos conversa com a senhora Maria e o senhor Manuel, um casal de idade avançada mas que nos confessa a tenacidade com que se agarram à vida e um ao outro.
- Já tive dois AVC’s mas continuo aqui. – Diz-nos o senhor Manuel.
- Há quantos anos estão juntos? Deviam ser um casal muito bonito. – Atira o Luís.
- Eramos dois cravos! – Responde a senhora Maria entre sorrisos cúmplices com o seu companheiro de vida.
Há nesta comunhão de afectos, qualquer coisa de gratificante. De sentido. De razão… de esperança…
Deixamos a porta destes dois cravos e rumamos de volta à aldeia das Oliveiras, mas o encontro com o senhor Francisco, cem metros depois, devolve-nos ao aconchego da adega.
- Mas onde é que tu vais homem?! – Exclama a senhora Lucília, apreensiva com o marido que vai abrir a porta de casa a três estranhos.
Colho dois cravos da sua floreira e desço a rua para os oferecer à senhora Maria. O Luís e a Yola já perscrutaram a opacidade da adega do senhor Francisco e conquistaram a confiança da senhora Lucília quando me junto a eles para partilhar um último naco de conversa antes do regresso que se faz tarde.
Homens de luta! Da luta da vida e das armas. Homens de juventude expatriada numa guerra que não era deles. Que têm de fazer pela vida num país que não é o deles… depois da guerra em terras africanas e de anos emigrado em França, o senhor Francisco está de volta à terra. Para além das uvas, tem também azeitona e antes de nos despedirmos, lança uma proposta ao Luís:
- Você quer vir apanhá-las? – Pergunta. – Eu só quero 50 litros, o resto é para si.


Caminhamos de volta à Aldeia das Oliveiras, cruzando ainda Penafalcão e mais umas quantas cerejas que somos incapazes de evitar.
Quaisquer cem metros podem ser uma viagem!
Se aquilo que importa é o encontro e a partilham, não há nada como estes pequenos momentos em que, no bunker improvisado destes homens de mãos gastas pelo trabalho árduo da terra, me sinto a viajar para mundos que não o meu. Como se cada encontro ocasional fosse uma fronteira que se transpõe. Um novo país que se visita… julgo que o Homem mais viajando não é aquele que mais carimbos coleccionou no passaporte, mas sim aquele que mais abraços e sorrisos resgatou para si de cada vez que pisou o passeio da rua onde mora.

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