Passou-se um inverno sem que tenha metido os
pés ao caminho. Mudou a estação, mudou a hora, mudou a cor da paisagem e o
cheiro do mato. Encheram-se as ribeiras e os pipos nas adegas. Há carqueja e
tortulhos na berma, e um pé na sapatilha a pedir estrada.
É hora de calcar terreno!
Objectivo: “uma voltinha pelas aldeias do
concelho (Proença-a-Nova)” – dizíamos nós quando inquiridos da razão da nossa
andança por aqueles lugares – perdidas de gente e na geografia do pinhal.
Segundo objectivo: apanhar tortulhos.
O tortulho é um cogumelo comestível que se
encontra sobretudo nesta região do Pinhal Interior; “só a sul de Castelo
Branco” – dizia-me o Luís, o meu companheiro de caminhada. As chuvas abundantes
e o calor repentino deste início de primavera parecem oferecer as condições
ideais para o seu crescimento. Deve procurar-se em zona de esteva, em encostas
voltadas a sul. Pequenas brechas no terreno são um bom indício da sua presença,
sendo que quando encontrados assim – ainda enterrados – apresentam-se nas suas
melhores condições.
A crença popular diz que por esta altura já
não os encontraremos; “já passou o tempo” – dizem-nos, mas na verdade não é
assim e em pouco mais de duas horas desenterramos o equivalente a cerca de
quilo e meio. Outro dos saberes populares é a forma de decifrar da perigosidade
do cogumelo: o tortulho, quando raspando no pé com uma faca, deve apresentar
uma cor avermelhada, caso contrario o melhor é não arriscar…
Mas não há tortulhos no início do caminho.
Ainda assim fico a saber da existência de um outro, castanho e completamente
arredondado como uma bola de ténis, que apresenta no seu interior um pigmento
negro, que, conta-me o Luís, era utilizado para o tingimento de tecidos.
Perdido no meio do mato, um velho ‘vira vento’
de horta tem a inscrição: ‘aqui é Portugal’. Uma cruz negra surge no cotovelo
do caminho. Conta-nos mais adiante o Sr. Simão tratar-se da lembrança a alguém
que ali terá falecido depois de tombar do seu cavalo. Até num qualquer
corta-fogo ou estradão de mato há uma estória à espera de ser contada, um
apontamento na paisagem que desperta curiosidade.
O mato apresenta uma pigmentação amarela. Uma
varicela dourada da flor da carqueja e dos maios.
A esteja contrapõe no seu vestido pálido de nódoas negras. Chamam-lhe a
flor das chagas de Cristo por apresentar cinco manchas púrpura nas suas pétalas
de um branco imaculado.
Labrunhal Cimeiro, Labrunhal Fundeiro. Galisteu
Cimeiro, Galisteu Fundeiro. Parece uma qualquer ladainha mas não é. São aldeias,
assim dispostas – no cimo e no fundo – destas encostas de baixo relevo, serpenteadas
pela Ribeira da Sarzedinha – estamos nós em crer, que aqui ainda não é certo.
À saída da pequena ponte, o vendedor de
farinhas deixa na sua carrinha o largo em frente à ‘Adega do Joaquim’. O Sr.
Carlos está sentado no único banco do largo:
- Bom dia! Então que é feito do Sr. Joaquim? –
Pergunto eu, atrevido.
- O Joaquim não está. – Responde-me o Sr.
Carlos.
- Que pena. Pensava que lhe vinha provar o
vinho, mas afinal…
- Não prova o dele mas pode provar o meu! – Conseguido
– penso.
O Sr. Carlos levanta-se em direcção a casa. Boina
na cabeça. Tem as pernas arqueadas e já caminha com dificuldade. A sua adega é
um espaço amplo, de pé alto e três pipos. Uma lâmpada desce em prumo do cimo do
tecto. Há esporas e velhas lanternas a petróleo encostadas pela sala. Das torneiras
jorram vinho e boa conversa; O Sr. Carlos tem os filhos em Lisboa – como de
resto parece ser apanágio deste país de aldeias envelhecidas... O vinho é bom! Fala-nos
de outros tempos; de quando tinha um cavalo para o passeio e um macho para os
trabalhos do campo. Os pequenos copos – típicos de tasca e de que eu tanto
gosto – enchem-se novamente deste liquido tinto a ‘fugir’ para o rosé. Prometo vir
ajudar na vindima de Setembro e aprender os segredos da feitura deste néctar, a
que o Sr. Carlos assente de imediato.
É quase meio-dia.
A nossa ‘voltinha’ tem cerca de 30 quilómetros,
pelo que é melhor seguir caminho.
Vamos em direcção às antigas instalações da
Sotima. A empresa de transformação de madeiras, que nos seus tempos áureos empregava
mais de 500 funcionários, é hoje uma ruína imponente… portões monstruosos dão
para verdadeiros hangares de mais de 200 metros de comprimento onde o que resta
são pilhas de ferro e o restolhar do vento nas brechas da cobertura, quais feridas
do tempo…
A autarquia de Proença-a-Nova tem procurado
revitalizar o espaço e transformá-lo em pólo empresarial e o resultado já se
sente. Empresas locais têm vindo a sediar-se aqui, aproveitando as antigas instalações
ou simplesmente o espaço. Aqui está instalado um dos mais modernos lagares de
azeite da Europa, representando uma valia importantíssima para os olivicultores
da região.
Descemos ao Vale das Balsas.
Ainda não há indício de tortulhos, mas consta
que se os encontrarmos será por aqui.
Por entre alfazemas – antes do primeiro
vislumbre do dito fungo – deparámo-nos com os trabalhos arqueológicos da
Associação de Estudos do Alto Tejo. Trata-se da Anta do Cão do Ribeiro – uma sepultura
pré-histórica e que se inscreve num inventario arqueológico e de valorização de
sepulturas pré-históricas inseridas numa rota pedestre.
- Há muitas por aí abaixo. – Dizem-nos os trabalhadores
no local. – Tortulhos é que não!..
Qual quê!? Minutos depois já eu e Luís deixávamos
o pescoço exposto às agruras do sol, vasculhando entre a esteva a presença do
cogumelo… Já não há muitos, de facto. Uma boa percentagem já se encontra em
avançado estado de crescimento, não conferindo por isso as características necessárias
ao seu consumo, mas ainda assim, contentámo-nos com um bom número de espécimes –
o suficiente para um risotto entre
amigos no dia seguinte.
Segue-se Espinho Pequeno e Espinho Grande.
Paramos para mais uma sandes e voltamos ‘à
carga’;
- Então onde é que se bebe um cafezito ou uma
malga de vinho por aqui? – Perguntamos.
- Oh amigo! Aqui não há nada.
- Mas então quem é que faz o melhor vinho
aqui? – Inquire o Luís o Sr. Manuel, que acaba de voltar do campo com a sua
esposa e ainda não parece muito seguro da nossa boa intenção.
- É tudo igual… – Responde. Não parece estar fácil
de o convencer a abrir-nos a porta da sua adega
- Mas então quantos moradores tem aqui a
aldeia? – Pergunta o Luís para tentar quebrar o gelo.
- Somos cerca de 15.
- Pois olhe que eu venho de uma aldeia ainda
mais pequena! – Atira o Luís.
- Então você é de onde?
- Do Casalinho. – Responde o Luís.
Remédio santo!.. a conversa prossegue entre
nomes que ambos conhecem – como a vizinha do Luís que com os seus ‘80 e muitos’
prepara a melhor broa da região, com o milho que faz o seu marido comprar
precisamente ao Sr. Manuel.
Enquanto isto, e sem que me dê conta, o Sr.
Manuel assoma à porta de casa de chave na mão;
- Vá! Venham lá provar o vinho…
A adega é mais pequena que a primeira, mas
ainda assim bastante acolhedora. O vinho apresenta a mesma cor rosada e é
igualmente apreciável. Velhos garrafões de 25 e 50 litros repousam vazios empalhados
numa estrutura de ferro. Este invólucro em palha serve para proteger o líquido
da luz solar e da temperatura;
- O Sr. Manuel não vende um destes garrafões?
– Pergunto eu.
- Não senhor. Isso é para eu engarrafar o
vinho e levar para casa. – Responde-me.
Uma vez mais, da torneira da pipa, brota
vinho e boa conversa. Falamos da vida no campo, do tempo que se demorava antes
para ir à vila, puxando juntas de bois para o mercado e namorando pelo caminho,
ora com uma ora com outra;
- Os amores eram no caminho. – Conta o Sr.
Manuel.
A tarde obliqua-se.
Há ainda alguns quilómetros para fazer e o
tempo escasseia.
Cruzamos as Moitas e descemos ao Casal de
Ordem. Há uma vista fabulosa sobre os Montes da Senhora – já para lá da
Sobreira Formosa. A Ribeira da Sarzedinha vai cheia e é preciso descalçar e
molhar as pernas até aos joelhos para a cruzar em direcção ao Vale d’Urso com a
sua ponte romana em três arcos. O Casalinho e o fim da caminhada é já além…
muito bom
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