12 outubro, 2013

SACHSENHAUSEN - MEMÓRIAS DO CAMPO

A pacatez da tímida praça dos correios - no sopé da colina de degraus que desce da estação de Oranienburg - guarda um sinistro segredo na vizinhança - sussurrado por um vento pregador de chuva, sob este manto cinza de que a manhã se procura desenvencilhar. 
Sabendo eu ao que vou, incomoda-me a placidez das árvores, dos passeios, das casas, da lógica... Para lá da última curva à direita, fica Sachsenhausen.



Construído em 1936, foi o primeiro campo de concentração erigido pelo regime nazi com o intuito de "confinar ou liquidar em massa", opositores políticos, judeus, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová e, mais tarde, prisioneiros de guerra. Foi pensado como campo modelo.




Há um silêncio sombrio.

Na luta da manhã por um raio de sol, recordo a visita a Auschwitz - sob uma pesada chuva miudinha - no verão de 2005 (como se o sol, nunca tivesse abençoado estas paragens). Aqui como lá - e como em tantos outros sítios - há um dever de memória para com a humanidade, que nem o próprio tempo - este da chuva e do vento - parece querer apaziguar.
Entro no edifício da morgue. Tudo aqui me faz confusão; as mesas de autopsia, as rachas dos azulejos brancos, o vazio, a luz petulante que atravessa a janela de vidros difusos, o arrastar dos passos de quem por aqui anda - os meus! - e o silêncio que fica quando todos se arrastam para fora...
Passo à enfermaria. Aqui, nos dois edifícios que a compõem, expõe-se todo o tipo de crimes médicos; esterilização compulsiva e castração, assassínio de doentes e experiências em humanos, para além das memórias quotidianas da enfermaria no campo.
Olho estes rostos a preto e branco. Mais do que o choque das cabeças rapadas e corpos esqueléticos em fatos às riscas, perturbam-me as fardas; impecáveis - botas limpas e chapéu bem posto num olhar sério - como se o diabo se mascarasse de gente...
Como pode alguém na sua humanidade, cometer tais actos a um dos seus?!?
Num dos expositores, um pequeno vídeo celebra o reencontro de cinco velhos prisioneiros, todos eles sujeitos a experiências médicas em Sachsenhausen. Ao vê-los em abraços e sorrisos, enterneço-me com as suas velhices. Com as estórias que carregam e com a possibilidade de podermos sacudir a  história, pelo menos de quando em vez, no ombro de um amigo de longa data.



Volto à luz trémula, ao vento que se agita.

Ladeando a calçada empedrada - num semicírculo disposto sobre uma planta triangular - divisam-se os rectângulos dos antigos casebres. Aqui, no espaço de dois homens, em beliches sucessivos, dormiam seis... Duas enormes bacias que nem fontanários dispõem-se ao centro da instalação sanitária, bem de frente para a fila acastanhada de sanitas.
Há fuligem no tecto e nas paredes. Em 1992, um ataque anti-semita destruiu parcialmente as barracas 38 e 39, onde hoje - e após a sua reconstrução - se recorda o dia-a-dia dos prisioneiros no campo.A centro do campo, os edifícios da lavandaria e da cozinha. Neste último, uma colecção de instrumentos de tortura destaca-se da exposição - ao mesmo tempo que na cave, junto ao tanque das batatas, uma série de pinturas com elementos vegetais animados, da autoria dos prisioneiros, se perfilam nas paredes, como se de um refeitório infantil se tratasse.



Na face exterior do cateto oeste deste triângulo pérfido, jazem as ruínas do crematório...
(...)
Mais de 200 mil pessoas foram feitas prisioneiras em Sachsenhausen entre 1936 e 1945. Dezenas de milhar morreram de fome, doença, trabalho forçado, maus tratos, ou simplesmente assassinadas pelas SS... outras houve - milhares! - que padeceram em 'marchas da morte' aquando da evacuação do campo, enquanto cerca de três mil era deixada para trás devido a doença...



Por fim, para lá da 'Torre E' no vértice principal do triângulo, fica a passagem para o Campo Especial Soviético.
Em 1945, poucos meses após o final da guerra, os serviços secretos soviéticos aproveitam as instalações de Sachsenhausen para aqui instalarem, também eles, o seu campo de concentração... A grande maioria dos edifícios é então utilizada para os mesmos fins, aprisionando funcionários nazis de baixa patente e indivíduos arbitrariamente considerados perigosos, com ou sem passado nazi. Homens e mulheres, novos e velhos... Em 1948, Sachsenhausen era o maior dos três campos soviéticos instalados em zona ocupada. Até ao seu encerramento em 1950, mais de 60 mil pessoas tinham sido aprisionadas, das quais 12 mil morreram de má nutrição e doença...


Regresso ao aconchego do comboio para Berlim com a eterna questão: 'como foi possível?'

Há na visita a estes memoriais, uma convulsão de emoções: raiva, tristeza, revolta, dor... mas também a convicção desse dever de memória. A obrigatoriedade da visita - porque tais actos não podem ser esquecidos... porque a cruz da história, é um fardo de toda a humanidade.

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