23 setembro, 2013

"DEUS! AJUDA-ME A SOBREVIVER A ESTE BEIJO MORTAL..."

O metro cruza o Spree numa pincelada de amarelo. O fim da linha é já no outro lado da margem, na estação de Varsóvia. Sobre o rio, a ponte Oberbaum é uma referência da paisagem berlinense; as torres góticas de cobertura cónica, o rendilhado de ameias e o arqueado que sustenta os dois pisos, mais parece um varandim de castelo medieval.


Inaugurada em 1896 para substituir a velha travessia em madeira, a ponte Oberbaum tornou-se numa importante ligação entre as margens da cidade que entretanto se expande para lá das fronteiras do Spree.
Num olhar despreocupado, surge na união metálica entre as torres, a memória da guerra e dos conturbados tempos que se lhe seguiram: em 1945, a Wehrmacht fez explodir esta secção da ponte numa tentativa de travar o avanço do Exército Vermelho, e com a divisão da cidade após o fim da guerra, a ponte torna-se fronteira entre as áreas soviéticas e americanas – num remendo em madeira – sem que nunca se tenha procedido à sua reconstrução.
Após a queda do Muro, uma união metálica é então projetada por Santiago Calatrava e nela a instalação ‘Pedra-Papel-Tesoura’, do artista Thorsten Goldberg – recordando a arbitrariedade das decisões de imigração num constante jogo luminoso entre os dois elementos fixos em ambos os lados da estrutura.



Descendo da estação, a East Side Gallery – a ‘maior galeria de arte a céu-aberto do mundo’ – é uma muralha colorida, emparedando o rio ao longo de mais de mil metros.
Iniciada em 1990, é composta por 105 pinturas de artistas de todo o mundo, de onde se destaca o trabalho de Dmitri Vrubel.
A icónica pintura de Vrubel tem origem na fotografia de Régis Bossu, tirada em 1979 por ocasião do 30º aniversário da fundação da República Democrática Alemã, entre os líderes comunistas Erich Honecker – então presidente da RDA – e Leonid Brezhnev – presidente da União Soviética. O ‘caloroso’ beijo trocado após o discurso de Brezhnev celebrava o acordo de dez anos estabelecido entre as duas partes meses antes, e que previa o fornecimento de navios, maquinaria e equipamento químico por parte da RDA, em troca de combustível e equipamento nuclear por parte da União Soviética.


Este beijo ‘boca-a-boca’, era até então um ritual vulgar entre ‘camaradas’ socialistas, mas Honecker e Brezhnev parecem um pouco mais entusiasmados que o normal. Afinal de contas, Honecker tinha muito por que gostar do seu homólogo soviético; é com o apoio de Brezhnev que em 1971 se torna líder do Partido Socialista Alemão, e em 1976 Presidente do Conselho de Estado da RDA.
Mas a ‘relação de amor’ entre os dois líderes era reciproca. Na verdade, RDA e a URSS precisavam-se mutuamente; a República Democrática Alemã tornou-se no grande defensor ideológico do comunismo, numa altura em que este se vê sob forte desconfiança, e por seu lado, a União Soviética garantia intervenção militar – como sucedeu em Praga, ao abrigo do Pacto de Varsóvia – em caso de uma revolta popular cada vez mais eminente face ao considerável número de oponentes ao regime de Honecker. Por fim, a RDA tinha ainda fortes interesses numa eventual futura reunificação da Alemanha, pelo que o clima apaziguado entre as duas potências transatlânticas – URSS e EUA – era-lhes extremamente útil de seguir.



Em 2009, Dmitri Vrubel é novamente chamado a Berlim para voltar a pintar o mural entretanto grafitado e vandalizado.

O icástico beijo volta a ser o principal alvo das objetivas dos turistas. Um beijo típico de uma tragédia grega. Sufocante. Um beijo onde os amantes se comprometem mutuamente, apesar de saberem não haver qualquer futuro na sua relação. Talvez por isso – e por tudo o mais – Vrubel tenha escrito em rodapé: ‘Deus ajuda-me a sobreviver a este beijo mortal’.


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