01 março, 2014

CRÓNICAS DO NILO #1 - Assuão

"The current situation in Egypt is calm and actually, this month we have, for the first time in a long while, seen a significant increase in the number of tourists at the hostel and in the city." 
Dina's Hostel. 13 de Dezembro.

Tudo parecia relativamente tranquilo no Egipto; os turistas estavam de volta, os comboios voltavam a circular depois de meses parados por decreto governamental, e a paz havia regressado à Praça Tahrir. Contudo, e face a tamanha instabilidade política e social, os protestos e manifestações acabariam por regressar, poucas semanas depois do meu contacto com Dina.
A 25 de Dezembro, o governo de transição atribui à Irmandade Muçulmana - deposta em Julho último - a responsabilidade de um atentado à bomba contra uma esquadra da polícia de Al Mansur e declara-a como 'organização terrorista' - ainda que os visados nunca tivessem reivindicado o atentado. Seguem-se protestos e actos de violência contra alegados simpatizantes da Irmandade e, em resposta, mais explosões no Cairo... O meu regresso ao reino dos faraós não podia pois acontecer num clima mais tenso. Mas se há lição que fui aprendendo com as viagens, é que dificilmente as coisas são exactamente o que parecem.
- Os problemas no Egipto são políticos. Não há nada contra os turistas! - Tranquilizava o amigo Ossama a partir do Cairo.
E era exactamente assim que eu pensava.

Há algum tempo que a democratização das viagens aéreas proporcionada pelas companhias low-cost, deixou de se circunscrever à Europa, e felizmente, o Egipto, já é parte desses destinos - ainda que os voos sejam apenas para Hurghada ou Sharm el Sheikh.
Voo para Hurghada.
Pouco antes da aterragem, da janela do avião, o deserto que se estende entre o Nilo e o Mar Vermelho mais parece o fundo de um oceano – como se por descuido, alguém tivesse deixado o ralo destapado e deixando esvaziar toda a água... Há montanhas, vales e ramificações como se de um delta se tratasse. 

Por estes dias, tudo no Egipto parece parado; construções inacabadas, cafés e restaurantes vazios, barcos encalhados num rio sem turistas. Tudo parece ter perdido o esplendor de outros tempos (ainda que a grossa camada de pó que tudo cobre, faça muitas vezes duvidar que alguma vez tenha existido).
Independentemente de tudo isto - e como acontece na maioria dos casos - o fascínio do lugar está na atmosfera das ruas. E isso, o Egipto não perdeu! Tudo está como sempre; os cheiros (nem sempre os mais agradáveis!..), as ruas repletas de gente, o frenesim dos bazares, o chamamento do muezzin entoando por cada recanto deste labirinto de ruas e vielas e construções desconexas.
Chego no último dia do referendo sobre a nova constituição. Pelo caminho, entre o aeroporto e a cidade, vêem-se filas de pessoas para votar. Sente-se o entusiasmo nas ruas. Vendem-se bandeiras do Egipto e mensagens festivas entoam de enormes sistemas sonoros equipados nos carros.
À boleia de um chá, numa das ruas do bazar apinhado de lojas de roupa e calçado, numa enorme esplanada improvisada no meio da rua e a som da novela que todos os homens presentes parecem assistir, Amir - o dono do estabelecimento - desabafa as suas angústias; lamenta a ausência de turistas e a necessidade de ter quatro empregos de forma a sustentar a família e o pai doente. Fala dos problemas de corrupção e no descredito que sente em relação a qualquer mudança que a revolução possa trazer.
- Não há revolução que mude o Egito! - Atira. - Há um restrito número de famílias que detém todos os negócios e por conseguinte, todo o dinheiro e poder. Ao povo não chega nada. E além disso, o povo sempre viveu subjugado por poderes maiores. - Conta.
- Construímos as pirâmides pela força. O Canal do Suez pela força. A grande barragem pela força... - Diria Ossama dias mais tarde, como que confirmando a teoria.
- Com Mubarak pelo menos a vida corria bem... - Confessa Amir.


Nesta costa de água azul-turquesa - como acontece por todo o país - o medo de novos atentados levou o exército para a porta de todos os edifícios governamentais, sedes de polícia, bancos e outros de considerável importância. E isso significa tanques e barricadas de sacos de areia, com militares de capacete e metralhadora em permanente posição de disparo.
Parto imediatamente para Assuão. O autocarro levará dez horas noite dentro...
Há dois anos atrás, Assuão era a minha porta de saída para o Sudão. Havia chegado no último dia do ano e a cidade - tida como uma das mais belas do Egipto - não me parecera assim tão encantadora. Mas desta vez, estava disposto a contrariar-me. 
Procuro o mesmo hotel onde havia ficado antes. Um hotel simples, minimamente limpo, barato, central e com vista sobre o Nilo.
Para uma primeira impressão, este é de facto um cenário deslumbrante; há cruzeiros e felucas (típicas embarcações do Nilo) estacionadas ao longo de toda a margem. Poucas são as que navegam rio abaixo, fruto dos tempos difíceis que o país atravessa.
Alheado de tudo isto, o Nilo segue o seu curso tranquilo. Das suas águas, a ilha Elefantina surge como um oásis, com os seus palmares e aldeias núbias, feridas por hotéis incaracterísticos e de puro mau gosto, com uma torre tão alta que não lembraria ao mais displicente dos faraós. Nas suas costas, na margem oeste do rio, enormes dunas de areia vêem-lhe cair aos pés. E tudo isto, banhado por um sol aconchegante de inverno, sob um céu azul imaculado.

 
Volto às ruas do souk e aos cafés que bem conheço. Sinto uma espécie de jet-lag provocado por duas noites mal dormidas. A cabeça pesa-me. O constante apelo a visitar uma loja ou a oferta de passeios pelo rio agudizam o meu cansaço. Ainda assim, sinto um certo conforto por estar de volta a um lugar que me é familiar.
Manhã seguinte e já refeito, apanho o barco para a ilha. O ritmo abranda. Há crianças descalças a jogar à bola num recinto relvado. Numa pequena loja, o 'baloiço' do tear vai e vem nas mãos do artesão.
Deambulo pelas ruelas e becos da aldeia. As casas são de todas as cores. Há amarelos e azuis fascinantes, mulheres envoltas em mantos negros como luto e miúdos brincando em cada esquina.
Junto ao Nilo, Ali traz pela mão o sobrinho. Depois da natural conversa de circunstância, estamos sentados num pequeno café, bem de frente para a sua feluca ancorada na margem.
- Uma vez por ano temos de as retirar da água para limpeza do casco e retoques de pintura. – Informa.
Ali - como uma boa parte dos egípcios - depende dos turistas e também ele lamenta a sua ausência. Contudo, vai mais longe na sua avaliação:
- O problema não é apenas dos últimos três anos. Esta situação já se vem deteriorando há 12, quando começaram a ocorrer atentados em Sharm el Sheikh e Luxor. - Revela. - Quem comete estes actos, nada tem a ver com a Irmandade Muçulmana ou com a religião. São simplesmente terroristas! - Desabafa.
Mas Ali irá retirar a sua feluca para o Nilo e fazê-la navegar novamente.
Sem que tivesse tentado impingir o que quer que fosse (o que seria o mais normal por estas paragens), chegamos facilmente a um acordo para um passeio no dia seguinte. Um dia que prometia ser em cheio, com a visita aos templos de Abu Simbel pela manhã e o referido passeio durante o resto do dia.

O convoy policial é a única forma de chegar a Abu Simbel. Reúne a cada madrugada por volta das quatro da manhã e levará três horas deserto adentro e a grande velocidade, até já bem perto da fronteira com o Sudão.
Os templos de Abu Simbel são não apenas um exemplo extraordinário da arquitectura faraónica, como também um feito notável de engenharia – uma vez que houve necessidade de os transladar alguns metros devido à construção da barragem de Assuão e à sua consequente submersão.
Ainda o sol desponta por detrás da cordilheira na outra margem do lago Nasser, aquecendo a manhã gelada, quando damos entrada no recinto dos templos. É um cenário cinematográfico. A esta hora iluminam-se de uma cor fogo. Ramsés II e a sua esposa de eleição, Nefertari, aguardam-nos imponentes, sentados no seu eterno repouso de pedra, ladeando a entrada do templo principal, juntamente com pequenas estátuas de familiares, como se de um retrato de família se tratasse. O templo é encimado por uma fileira de babuínos e divindades do Nilo, símbolo da unidade entre o alto e o baixo Egipto. Nas paredes, há inscrições descritivas do casamento de Ramsés com a filha do rei Hitita e representações de batalhas na Síria, Líbia e Núbia, com cenas de prisioneiros agrilhoados como oferenda aos deuses. No interior, bem ao fundo, o santuário interno era o local mais sagrado do templo e ao qual apenas o faraó podia aceder. Possui três estátuas de deuses e uma de Ramsés. Por duas vezes no ano (a 21 de Fevereiro e 22 de Outubro – nascimento e coroação de Ramsés, respectivamente) é celebrada aqui a chamada 'ascensão de Ramsés', com os raios de sol vespertinos a cruzar todo o delubro e a incidir directamente sobre a sua estátua.
Poucos metros a norte, o templo de Nefertari é o contraponto ao Grande Templo. De dimensões bastante mais reduzidas e ornamentação simples, é dedicado a Hathor, deusa do amor e da beleza. Na fachada, seis colossos representam o faraó e a sua amada, de pé e em posição de marcha, uma vez mais ladeados de pequenas estátuas de familiares. O interior, é notoriamente mais pobre que o semelhante do sul.
 
A manhã avança. Pequenas embarcações de pescadores perdem-se na imensidão do lago. Abeiro-me do enorme espelho. Olho-o com firmeza e é como se avista-se ao longe o ferry laranja (que nem laranja era!), atravancado de carga, que me levou às terras da Núbia e a essas gentes tão genuínas…


Não sobra tempo. O regresso a Assuão no mesmo convoy policial não dá sequer ensejo aos importunos vendedores de lenços, supostos alabastros ou papiros. Há um deserto a atravessar. Uma mesma ‘vastidão de nada, varrida por alguém muito cuidadoso’ – como recordo ter escrito sobre a travessia do deserto entre Merowe e Atbara (Sudão). De quando em vez, uma miragem no horizonte. Um prenúncio enganador de água, como o é o canal construído pelo governo, e que até hoje continua sem levar a rega prometida aos povoados do deserto.

Ali aguarda na margem direita do Nilo. Da sua feluca solta-se o perfume da cebola picada em azeite. Prepara o almoço para largar amarras; foul (favas num estrugido à moda núbia), falafel (bolinhos de puré de grão com coentros), salada, pão e queijo.


Rumamos a norte. A favor da corrente. Ali faz içar a sua vela triangular – semelhante à vela latina – que lhe permite navegar contra o vento, ainda que em constante ziguezague. Ali, segurando firme o leme, debate-se numa constante dança entre um lado e outro da vela. No convés, estendeu uma série de colchões convidando ao repouso… O vento sopra. O dia está bom para velejar. Em dias assim e começando cedo, é possível chegar a Kom Ombo ou mais além. Quando solicitado, Ali navega até Luxor, numa viagem de cinco dias rio abaixo.
- Tenho um amigo inglês que gostava de se juntar a nós para o pôr-do-sol. Vocês importam-se? – Pergunta. Está a construir casa aqui na ilha e passa cá metade do ano. Conheço-o há uns 15 anos…
- Claro que não!
Richard vem ao nosso encontro no seu pequeno barco a motor na companhia de Mohammed, amigo comum de Ali e com quem está a construir casa.
- Terá dois pisos. Um para mim e outro para ele. – Conta. Estamos a fazê-la à maneira tradicional mas já não há quem as faça. Tivemos de recrutar construtores em Kom Ombo para fazer as cúpulas ao estilo núbio.
Richard, de parcos cabelos brancos e olhar camuflado sob uns joviais óculos de sol, sobe a bordo munido de um franco sorriso:
- I brought the Gin! (eu trouxe o gin)
Richard – diplomata reformado – encontrou no clima de Assuão o alívio para as dores do corpo e da idade. Os tristes invernos bretões, passa-os por aqui – fugindo para casa apenas quando o calor se torna insuportável. Diz conhecer Assuão há mais de 20 anos;
- Quando vim cá pela primeira vez não havia marginal nem estrada alcatroada. Não haviam prédios altos nem os atentados que por aí se foram construindo. E agora, com a nova ponte, a margem ocidental terá certamente o mesmo destino. – Desabafa. Não há qualquer consciência urbanística ou paisagística! Reparem por exemplo aqui no hotel da ilha; foi construído pelo filho de Mubarak. Quando o pai cá veio não sabia sequer que era o filho quem estava a construir e perguntou: ‘Quem é o responsável por esta aberração?‘. Mandou suspender a obra e ordenou que não fossem construídos mais pisos. O projecto tinha o dobro da altura do que agora se vê… E este tipo de insultos infelizmente, encontram-se espalhados por todo o lado.
O sol cai ao sabor da conversa. Richard é um profundo conhecedor das idiossincrasias egípcias. O jovem amigo Mohammed está ao telefone;
- Está a conversar com a namorada. – Confessa-nos Richard. Namorar aqui é uma tarefa difícil. Eu faço o que posso para os ajudar, mas as famílias não podem sequer sonhar que eles se encontram. É uma sociedade extremamente machista. Há histórias muito tristes. Tenho uma amiga que casou com um tipo mais velho, não conseguiu engravidar e – claro! Aqui esse tipo de problema está sempre na mulher – acabaram por se divorciar. O problema, é que já não sendo virgens, estas mulheres passam a ser rejeitadas…
O sol afunda-se. De um lado a sombra do outro um laranja espesso. A garrafa de Gin abre-se de dentro do saco preto que a esconde;
- É uma questão de respeito. A maioria dos egípcios não bebe álcool, como sabem.
A conversa flecte de direcção ao compasso do leme de Ali, agora apontado a sul e a favor do vento. Questiono Richard sobre a situação actual do país, sobre como isso afecta a vida em Assuão e sobre a possibilidade de uma guerra civil;
- Aqui está tudo geralmente tranquilo – ainda que há dias, enquanto fazia compras, tivesse de fugir de uns disparos de gás lacrimogéneo. Eram apenas algumas dezenas de pessoas mas a polícia não sabe como lidar com as manifestações! Quanto à eventualidade de uma guerra civil, acho difícil. Os egípcios têm um respeito extraordinário pelo exército. Seriam incapazes de pegar em armas contra eles. Além disso, o general Sisi (que depôs Morsi) é um homem inteligente e que os egípcios admiram.

 
Ali estaciona o barco na margem para o jantar; para uma noite sob as estrelas e longe do buzinar constante das ruas. A conversa prossegue. Tenho a sensação que este devia ser o fim da viagem e não o inicio...
Assuão revelou por fim, todo o seu encanto.

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