05 abril, 2014

CRÓNICAS DO NILO #3 - CAIRO. EXCITANTE CAIRO. APAIXONANTE... (VERSION: 2.1)



Haverá no mundo, certamente, poucas cidades como o Cairo; uma metrópole de vinte milhões de habitantes (vinte e quatro durante o dia), com um trânsito caótico; uma ‘hora de ponta’ que se estende das oito da manhã às seis da tarde; que mistura nas ruas carros e carroças, bancas de legumes e fruta; e que apesar de tudo, é detentora de uma atmosfera tão particular.
O Cairo, tem quase tudo aquilo que me faria não gostar dela; é poluída, de edifícios monocromáticos, densamente povoada, grande e barulhenta. Contudo, é uma cidade apaixonante. Uma cidade para me demorar. Uma cidade onde cada recanto e ‘virar-de-esquina’ guarda uma surpresa. Onde não há dias iguais. Onde o presente encontra o passado, e onde o futuro se escreve nas ruas.

Não há comboios para o Cairo. Vão parar durante dez dias – pelo menos é essa a indicação repetidamente dada (porque não me conformo à primeira) na estação de Luxor… O dissabor não podia ser maior!
O autocarro alternativo levará cerca de oito horas por uma estrada de deserto, nada havendo que contar (exceptuando a inesquecível imagem – à chegada do autocarro a Luxor – do amontoado de lixo que rebola pelos degraus traseiros, quando este abre a porta para entrarmos)… Só quando o sol se resolve a tombar – já nos arrabaldes do Cairo – indícios de civilização assomam à nossa janela; coloridos sacos plásticos soprados pelo vento e estatelados de encontro às vedações de arame, e um vislumbre de pirâmides por entre um jardim de chaminés altas e fumegantes, num qualquer campo industrial.

É noite de 24 de Janeiro – véspera do terceiro aniversário da revolução que derrubou Mubarak. Durante o dia, o rebentamento de quatro engenhos explosivos vitimou civis e policias, e espalhou o pânico e o medo. A Irmandade Muçulmana havia prometido um fim-de-semana de raiva…
Quando descemos à rua para jantar, uma estranha calma paira sobre a cidade. É sexta-feira. As ruas deveriam estar apinhadas de gente jogando dominó, fumando shisha e discutindo a actualidade do país. Ao contrário, encontramos esplanadas vazias, lojas fechadas e pouco trânsito. A cidade que nunca dorme estava agora anestesiada pelo medo.


Na manhã seguinte encaminhamo-nos para o Bairro Islâmico. Os tanques continuam à porta de alguns edifícios estratégicos, mas não há qualquer sinal de tensão. De cima dos seus ‘chaimites’, dois ou três soldados lançam sorrisos lascivos à mulher que levo pela mão. Tão pouco há sinais de celebração. Nada indica ser dia de festa.
Cruzamos a manhã. Penetramos o beco ladrilhado que leva aos talhos de um qualquer mercado. Da entrada arqueada pende um cordão de lâmpadas desbotadas. Há grades e portões de ferro e fachadas de pedra mármore. Lá dentro, sob os feixes de luz incidente que atravessa os vãos altos e curvos como focos incandescentes, tudo parece perder a cor. A cidade cobre-se de um manto de preto e branco. Do mesmo preto das jallabiyas das mulheres que atravessam as bancas de cabeças de carneiro, mioleiras e mãos de vaca.


Lá fora – por entre o caos das artérias do Cairo – a arrumação, como se toda a cidade fosse um enorme bazar disposto por categorias de produto: ruas intermináveis de artigos electrónicos, bancas para consertos de telemóveis, ruas de vendedores de tapetes e cortinados, ruas de fabricantes de sofás, ruas de roupa e lingerie tão atrevida, que por cá só figurariam na montra de uma sex shop… há por cá contra-sensos, que vá o diabo entendê-los…
Continuamos em direcção a Khan el-Khalili. Um viaduto enorme corre sobre as nossas cabeças até bem perto da mesquita Al-Azhar. O buzinão de carros e motociclos é constante. O já caótico trânsito do Cairo complica-se com o fecho de estradas de acesso a esquadras de polícia e outros edifícios, potenciais alvos da ira terrorista. Voltam a surgir os ciclistas transportadores de pão, os assadores de milho e batata-doce, as lojas de produtos expostos até aos limites do passeio e os inoportunos ‘fazedores de conversa’ que nos querem sempre levar para onde não queremos ir.


Entramos finalmente em Khan el-Khalili – um enorme bazar no coração da cidade. As suas origens remontam ao século XIV no lugar de um antigo entreposto de caravanas. Depois da grande mesquita de Al-Hussein, as ruas tornam-se estreitas, cobertas de toldos, um labirinto de lojas, pequenos cafés e restaurantes. Aqui qualquer vendedor fala três ou quatro línguas. Julgam-nos espanhóis, depois argentinos ou italianos, mas nunca portugueses.
O ziguezaguear levar à rua Al-Gamaliyya, que se estende até à muralha norte da antiga cidade Fatimída de Al-Qahira. Por mais próximos que possamos estar de um dos principais pólos turísticos da cidade, esta parece a mais esquecida das ruas do Cairo. Não há passeios nem qualquer tipo de lajeamento na rua. Há tubos e calhaus a céu aberto como entranhas de uma rua moribunda. As entradas das lojas estão tão altas que mais parecem varandas. Acedem-se por rudimentares passadiços em madeira. Aqui estranha-se a nossa presença…


A rua desemboca num dos dois portões da antiga muralha. Portões torreados e imponentes como baluartes, de ameias e merlões, aberturas abobadadas e esmerada alvenaria. De poucos metros entre si, sai-se por um, entra-se por outro. Na volta fica a grande mesquita de Al-Hakim – uma das maiores do Cairo e detentora dos mais antigos minaretes da cidade. Ao longo da sua história milenar, foi cárcere de cruzados, armazém de Napoleão, escola e até estábulo. Tenho-a como uma das mais belas da cidade; o seu enorme pátio em mármore, as arcadas, a cornija rendilhada, as bambinelas glaucas – dramatúrgicas, abertas e presas ao centro como o pano de um palco –, o tecto em madeira e os candeios que dele pendem como fogaréus invertidos, fazem dela um lugar mágico. Gosto do misterioso contra-luz do interior, do emaranhado de colunas, das raparigas indistinguíveis nos seus véus imaculados, dos pombos que se agitam lá fora, fazendo deste, um cenário quase irreal. 


De volta ao buliço do bazar.
Deixo-me impressionar pelos minaretes, pela arquitectura, pelas fachadas ornadas, pelas bancas apinhadas de artefactos, pelas passagens em arco, pelas cores, pelas portas…
Caminhamos para sul, como se a rua se estendesse infinitamente. O requintado comércio de ourivesaria, madrepérola, especiarias, candelabros mouriscos e todo o tipo de finuras decorativas, dá agora lugar ao negócio quotidiano. Às bancas de fruta e legumes; de animais vivos, engaiolados e prontos a morrer; de roupa e sapatos; de costureiros de chinelos e fabricantes de tendas. A rua já não é rua, é um beco onde todos se encolhem para um incompreensível trânsito de motociclos e automobilistas teimosos.
Nas enigmáticas e desconexas ruas do Cairo, a sensação é de uma viagem no tempo. A sensação de ser transportado a um mundo de carroças puxadas a cavalo ou a burro, a caravanas de comerciantes, a ruas imundas, coloridas e de forte odor a galináceos e afins. Ruas de mausoléus, madraças e mesquitas imponentes, de altos minaretes, cúpulas e arcadas mouriscas.

 

Imergimos do caos. Um pequeno grupo de pessoas entoa slogans e agita bandeiras – parecem dirigir-se à Tahrir. Seguimo-los com tal distância preventiva que os perdemos. Metidos na nossa distracção, somos surpreendidos por um ‘polícia à paisana’ que nos interpela bruscamente, pedindo identificações e revistando mochilas. O medo é latente. Não percebe porque não trazemos os passaportes connosco. A fotocópia de nada serve! – Diz agitado. De repente estamos rodeados de polícias investigando as nossas fotografias e cadernos de apontamentos. Trocam impressões entre si, mas à falta de qualquer indício de espionagem – ou o que quer que seja que os atormente – deixam-nos por fim seguir.
De volta ao hotel, a informação é de que tudo está tranquilo. Os canais televisivos difundem imagens de festejos em várias cidades. A praça Tahrir está repleta. Há registo de confrontos, mas nada que esmoreça os ânimos da maioria. Ouvem-se disparos. Não é grave – asseguram-nos – são apenas foguetes e fogo-de-artifício. Ainda assim, resolvo vasculhar o universo ‘cibernético’ a procura de notícias. Lá fora há um grito a agigantar-se. Mais disparos. Assomo à janela e a noticia está ali: uma multidão que foge pelas ruas adjacentes à minha varanda, aparentemente em resposta ao gás lacrimogéneo.

Nessa mesma noite, ao circular pelas ruas de sempre, não vislumbro senão esses rostos em festa – essas caras pintadas de vermelho, branco e negro, e bandeiras desfraldadas ao ombro, como se o medo se tivesse dissipado no regozijo desta gente – ainda que olhando para os crachás e autocolantes que trazem ao peito, se possa ficar na dúvida, tanta festa não se tratar antes de uma manifestação de apoio ao general Sisi…

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