15 abril, 2014

CRÓNICAS DO NILO #4 - CAIRO. EXCITANTE CAIRO. APAIXONANTE... (VERSION: 2.2)



No meio da confusão do Cairo, o metro é uma pequena contradição; é seguro, eficiente e limpo. Cada composição tem ao centro duas carruagens destinadas apenas a mulheres. Não que se trate de uma obrigatoriedade – pois podem sentar-se onde quiserem – mas porque assim, defendem, as protegem de eventuais assédios e de serem olhadas ou tocadas em horas de grande aperto.
Com o encerramento da estação ‘Sadat’ há mais de seis meses – situada sob a praça Tahrir e ponto de confluência entre linhas – as composições vindas de ‘Ramses’ – a única estação onde agora é possível o transbordo – chegam já geralmente cheias às paragens seguintes.
Entramos assim para o amontoado de passageiros naquela manhã de domingo, início de semana. Dirigimo-nos para o bairro copta – uma das zonas mais antigas da cidade – onde o quarto crescente dá lugar à cruz.
Paredes-meias com a saída do metro, reminiscências da antiga fortaleza romana – de alvenaria em tijolo aparente, intercalando fileiras zarcão com blocos maiores de cor creme – e a imponente igreja de São Jorge – de nave circular e cúpula abobadada – lembram um qualquer lugar algures na Grécia. Ligeiramente a sul, a Igreja Suspensa é uma das mais importantes do perímetro copta; remonta a 285 da era cristã e o seu nome advém do facto de ter sido construída sobre duas torres de entrada da antiga fortaleza. É residência do Papa Copta Ortodoxo de Alexandria desde a invasão árabe do Egipto e aqui permanece desde então. No seu interior, tectos curvos e em madeira como o casco invertido de um bote, representam a Arca de Noé e a salvação dos que sob ele se acomodam. Lá fora, o pátio murado entre a rua e a igreja é um reduto. Como se se pretendesse esconder ou proteger de um mundo exterior que lhe é adverso. Como se se remetesse ao exílio…
Do quarteirão copta fazem ainda parte um museu, uma sinagoga e um punhado de pequenas igrejas. Numa delas – a de São Sérgio – reza a crença popular ter sido o local onde a Sagrada Família se escondeu em fuga de Herodes.

Voltamos ao metro e ao centro da cidade. Sempre a mesma agitação: a mole que se cruza em constante movimento, os vendedores ambulantes que ocupam os passeios, os jogadores de dominó ou gamão, fumando shisha e enchendo os cafés. Tudo me atrai, não sei bem porquê… À saída da estação vendem-se meias, cartões de indecifrável utilidade com o rosto de Sisi e dois homens escarpelam milho sentados no chão, qual desfolhada.
O trânsito é sempre a mesma loucura incompreensível. Sempre no mesmo buzinão. Há carros em contra-mão, sem luz, em excesso de velocidade, condutores sem sinto. Numa moto podem seguir até cinco pessoas! Não há respeito por qualquer tipo de sinalização ou regra de trânsito. Quando parado, parece um jogo de tetris, com cada carro a tentar enfiar-se nos espaços disponíveis… Mas não há acidentes. Só toques! – Dir-nos-á Gaber dias mais tarde em Alexandria.

Nessa tarde, enquanto aguardávamos o amigo Ossama, procuramos onde beber uma cerveja. Os locais para as beber não abundam no Cairo – a menos que se saiba onde procurar. As bebidas alcoólicas só se vendem em estabelecimentos próprios e os bares onde são servidas escondem o interior – ainda que na maioria das vezes haja um reclame luminoso sobre a porta que o anuncie.
É um lugar tacanho; talvez umas cinco mesas dispostas em ‘U’ e voltadas para a televisão que transmite noticias. Só há homens. Por entre cervejas mordem-se tremoços, amendoins, cenoura, pepino ou tomate. Há algo distinto nos homens destes lugares; não têm certamente a testa calejada da oração, mas não é só isso. É o traje. A expressão. O ar de quem viu mais do que o que lhes contaram. O sorriso de liberdade, de inocuidade, de uma certa sabedoria… Mas talvez tudo não passe da minha imaginação. Talvez nada disto seja assim. Talvez sejam só homens, mundanos, a beber cerveja num incumprimento de preceitos.
Outro desses lugares é o mítico El Horreya – certamente um dos meus preferidos. Em tempos de revolução foi pólo fulcral de encontro e debate das novas gerações. O El Horreya é lugar da multiculturalidade do Cairo; aqui o árabe mistura-se com o inglês na mesma proporção – e não falo de turistas! O seu tecto alto amarelo pálido, as ventoinhas empoeiradas, as portadas abertas mas entaipadas como quem se protege de um motim, as mesas de pés metálicos e tampos em mármore, conferem-lhe o ar cosmopolita que o engraça.

O amigo Ossama chega por fim, mas não bebe (nem fuma – o que é raro entre os egípcios). Leva-nos a pé ao outro lado do rio. Pela primeira vez desde o meu regresso, percorro uma Praça Tahrir sem trânsito. Está completamente cercada de tanques e arame farpado. A velha sede do partido de Mubarak, incendiada por detrás do Museu Egípcio, continua de pé como um fantasma. À entrada da ponte Kasr Al Nile os imponentes leões repousam imperturbáveis. Os néones dos barcos fazem lembrar Banguecoque. Há vendedores de chá e batata-doce sobre a ponte, cadeiras e mesas como se de uma esplanada se tratasse. Há quem se empoleire sobre a guarda para uma fotografia arriscada. Daqui vêem-se todos os ‘cinco estrelas’ do Cairo, com as suas torres altas, incontáveis varandas e luminosos reclames.
Haveremos de jantar e saborear um dos muitos cocktails de fruta, tão próprios das ruas do Egipto. A noite terminará num café entre amigos. O Cairo tem tantos e tão interessantes, que tenho a sensação de ser capaz de passar dias só a explorar esses recantos do ócio. Debate-se política e arte. Ossama e alguns dos presentes, perderam amigos durante a revolução. Passaram semanas acampados na praça. Mas fariam tudo de novo – dizem.
Por entre copos de ‘sobia’ – bebida à base de coco e baunilha –, uma espécie de chá frio de hibisco e alguma shisha, a conversa flui descontraída até ao adeus.



Por mais vezes que as visitemos, as pirâmides não deixam nunca de nos surpreender. Naquela manhã – encoberta e de tal maneira ventosa que me punha o cabelo a parecer o Wolverine – a sensação era tal como a da primeira vez.
Lá, de onde subimos ao dorso de um camelo para a visita, ao longe avista-se Sacara e as faces em degraus da sua pirâmide. Do outro lado, os ’três vértices’ do planalto de Giza vão-se lentamente desvendando. Aqui de cima, numa transição brusca como o choque de duas faces em luta, vejo o deserto dar lugar à cidade. O vazio ser ocupado pelo amontoado de edifícios e avenidas.
Das três pirâmides, Quéfren parece semi-coberta por um atoalhado. O seu cume preserva ainda um aspecto fiel da aparência original. Não há como não nos deixarmos impressionar pela imponência destes megalíticos. Pela tenacidade com que têm sobrevivido quase intactos ao longo dos anos. Pelo marco civilizacional que representam. Há algo de particular no simples facto de tocar estas pedras. Como se pudéssemos ser transportados a outro tempo, ser testemunhas de um feito notável. Como se fosse preciso tocar-lhe para assegurar que existem – ainda que a pergunta nos ocorra sempre: ‘como foi possível construir algo assim?’.
Deambular por aqui é imaginar fileiras intermináveis de homens atarefados; carregadores, escultores e um sem-número de outros artífices. Bailéus de madeira num estaleiro de dimensões faraónicas.
Aqui de cima ainda, constato uma vez mais as dificuldades por que passam estes homens e mulheres: não há turistas! São tão poucos para um lugar onde em tempos chegavam aos milhares… 

Contornamos a esfinge e deixamos o recinto à mercê do tempo. Lá fora, no caos das artérias adjacentes, procuramos almoço numa banca de rua.
Se há coisa boa que um destino pode oferecer, é boa comida de rua. E aqui há muito por onde se escolher. Como se já não bastasse ser barato (muito barato!), a oferta vai desde a simples piza – à moda do Egipto: ligeiramente picante e de tamanho individual que enrolam como um wrap – até às vísceras…
Há bancas de tudo: falafel, foul, peixe frito, miolos e rins (juraria que pulmão também…), shoarma, kebab e koshari – uma ‘ração’ de hidratos de carbono com massa, lentilhas, arroz e grão-de-bico, sob um molho picante de tomate e cebola crocante. O difícil é sempre escolher…

Ao cair da tarde voltamos às imediações de Khan el-Khalili. Três vezes por semana, um espectáculo de dança Sufi tem lugar no Centro de Artes el Ghoury. Da rua, dificilmente nos apercebemos do interior. A fachada – de entrada entalhada e coroada com uma espécie de semi-cúpula – dissimula-se no quarteirão. Este antigo entreposto de caravanas parece um riad. Lá dentro, o palco e a plateia estão montados no pátio, sob o céu aberto e em volta de uma arcada de dois pisos avarandada. Tem um certo ar de mosteiro. Por cima, há duas linhas de janelas verticais, dispostas em conjuntos de três; uma guarnecida com portadas em madeira de abertura basculante, outra simplesmente fechada numa malha de ferro. Mais acima, no último piso, um conjunto de caixotões salientes em madeira, talhada como renda, encerram a última fileira de janelas.
Acomodo-me. Recordo ter sido precisamente aqui que dois anos antes, em conversa com um grupo de novos amigos egípcios, me diziam que a iminência da eleição da Irmandade Muçulmana, era uma oportunidade que os egípcios lhes concediam depois de anos de trabalho clandestino. É quase irónico, mas dois anos volvidos o Egipto parece ter dado uma volta completa para regressar precisamente ao mesmo ponto: o país agitou-se para derrubar o general Mubarak, partiu para eleições livres, arriscou num candidato controverso – que passado pouco mais de um ano o exército faz cair e encarcerar – e neste momento prepara-se para ir novamente às urnas eleger um novo elemento da ala militar…
Encerram-se as luzes da plateia resgatando-me aos meus pensamentos. Um grupo de homens de túnica e turbante branco sobe ao palco tocando derback, snujs, zamr e riq – uma espécie de djembe, castanholas metálicas, pífaro e pandeiro. Pouco depois tem início a dança. Um sufi rodopiante entra em palco. Veste um casaco negro a condizer com a saia que roda sem cessar como um carrossel. Parece em transe. Lentamente e sem nunca parar despe o casaco. Faz subir a primeira saia acima da cabeça. Tem umas sobre as outras mais parecendo as mulheres da Nazaré. Sinto-me zonzo só de ver. O contraste de cores das saias é alucinante. Juntam-se mais dois dançarinos. As saias agitam-se constantemente, ora rodando sobre as suas cabeças, ora na sua frente. Parecem incansáveis. Capazes de estar ali durante horas como se fossem bailarinas a corda.




O voluteio terminará por fim num aplauso. Fico a perguntar-me como são ainda estes dançarinos capazes de se aguentar de pé…
Lá fora – onde entretanto regresso – as ruas e a agitação da cidade permanecem iguais; excitantes e apaixonantes, como só o Cairo parece capaz de garantir.

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