02 junho, 2014

CRÓNICAS DO NILO #5 - A VIDA ENTRE OS MORTOS E O LIXO


É um lugar fantasma. Paira uma sensação de vazio nestas ruas de areia – pode parecer redundante mas é puro engano; muitas são as vidas na ‘Cidade dos Mortos’ – entre quinhentas mil e um milhão. Há quem fale em dois…

Do cimo do passadiço que cruza a auto-estrada, o Cemitério Norte estende-se a perder de vista; são mais de dez quilómetros entalado entre duas grandes vias rápidas. Um emaranhado de construções, casas fúnebres e pombais que mais parecem torres de vigia, neste que é também refúgio de criminosos e delinquentes fugidos à justiça. Visto de bem alto, é a zona mais compacta da cidade.
A franja mais pobre da sociedade acabou empurrada para aqui, onde apesar de tudo é ilegal estabelecer morada. Não há água potável ou electricidade. Não há sistema de esgotos nem recolha de lixo, ainda que esta me pareça a mais limpa das zonas do Cairo.
Aqui vive-se lado a lado com túmulos e sepulturas que servem como mesas de sala. O facto de muitas das construções funerárias terem em conta a tradição egípcia de sepultar os mortos em lugar onde pudessem com eles passar os 40 dias de luto, ajuda à sua ocupação. Em troca, os residentes vivos asseguram o cuidado dos mausoléus ou pagam pequenas quantias aos guardiões do cemitério para que se possam alojar no seu recinto.
Tal número de habitantes fez florescer uma economia local, e não é difícil encontrarmos tudo aquilo que é necessário ao seu dia-a-dia: padarias, pequenas lojas, oficinas e até uma escola.
Na silhueta mais ou menos invariável dos telhados do cemitério, sobressai o minarete da mesquita Qaitbay.


Descemos às ruas. O Cairo parece repleto destes lugares onde subitamente tudo se transforma em preto e branco. Lugares de ausência de contraste, de silêncio. Aqui, sobre o empoeirado das ruas, parecemos deambular por uma outra cidade: não há buzinão nem tão-pouco carros que o apregoem; não há gente e as poucas pessoas que se vislumbram neste labirinto de túmulos, sepulturas e jazigos, não parecem propriamente agradadas com a nossa presença. Sinto como se lhes invadíssemos a vergonha. Ainda assim, há quem nos abra a porta de casa e nos convide a entrar.
Penetramos um estreito corredor até ao pátio de roupa estendida ao sol. Muros altos como um ergástulo. Mulheres de largo decote e busto cheio ostentando ao colo uma medalha com o rosto do filho. Crianças de olhar desconfiado. Cadeirões e sofás numa espécie de terraço de terra calcada. Lá fora vislumbram-se as grandes marquises altas. Talvez pombais. Erguidas sobre um cruzado metálico como plataformas petrolíferas no cimo dum décimo terceiro andar.
Não há nada que ver. É uma intromissão perversa, esta. Como se alguma vez nos passasse pela cabeça abrir as portas de nossa casa a um mero estranho curioso…
Cá fora as ruas continuam idênticas. Caladas. Carros fossilizados. Árvores despidas. Ocasionalmente um pequeno grupo de miúdos dando chutos numa bola ou algumas mulheres tagarelando à porta de casa.


Em direcção a oeste, cruzando a outra auto-estrada e a via-férrea, a ‘cidade do lixo’ esconde igualmente os seus mistérios.
Manshiyat Naser é o bairro dos colectores de lixo do Cairo. O quarteirão de uma população anteriormente de maioria copta e que chegou a criar aqui – em plena rua – os seus próprios porcos (que os muçulmanos não comem), alimentando-os de restos que separavam do lixo que recolhiam.
Nos principais cruzamentos do bairro, sinais de uma profissão de fé contrária à maioria vigente, pendem de arames como pequenos relicários. Imagens de patriarcas coptas e de São Jorge e o seu cavalo branco vencendo o dragão, em caixas de madeira gravadas de cruzes.
Aqui e ali, miúdos de pés sujos e chinelo no dedo possam para a fotografia indiferentes ao quotidiano que as rodeia.


Camiões empilhados de enormes sacos de serapilheira à altura de uma primeira varanda e homens sentados no cimo trazem o lixo até ao bairro. Em cada rés-do-chão há uma oficina ou um armazém onde o lixo é depositado e tratado. Cada família recicla apenas um tipo de lixo. À medida que vamos subindo a principal rua do bairro, o metal vai dando lugar a um material cada vez mais pobre, a uma desarrumação cada vez maior, a casas cada vez mais básicas, a indumentárias cada vez mais pobres e sujas, numa relação intrínseca entre o lixo reciclado e o estatuto social.
Não compreendo por que lhe chamam ‘cidade do lixo’ em vez de ‘cidade da reciclagem’. Por que no fundo é disso que se trata.


Voltamos atrás.
Ironicamente, não muito distante destas duas realidades fica o parque Al-Azhar. Uma manta verde de jardins e lagos artificiais, estendida sobre o aglomerado de edifícios, ruelas e avenidas, mesquitas e minaretes que compõem a cidade do Cairo. 
Lado a lado com a ‘cidade dos mortos’, o parque Al-Azhar perfila em listas dos melhores parques do mundo…
As vistas do seu ponto mais elevado são incríveis. Vislumbram-se as muralhas da cidadela e os minaretes da Mesquita de Alabastro no seu interior. Um céu púrpura mancha o fim de tarde. Os pombos esvoaçam sobre as coberturas inacabadas e repletas de parabólicas. Acendem-se os néones.

  
O Cairo tem encantos de aldeia. Como se, apesar da multidão que a habita 24 horas por dia, se recusasse ao estatuto de metrópole. Os seus encantos e mistérios são intermináveis e, na maioria das vezes, indecifráveis – como se a poeira do deserto que cobre os edifícios ocultasse também o seu génio. Como se apesar de toda a grandeza, fosse possível apenas de encontrar nos recantos a meia-luz onde ecoa o rebolar dos dados num tabuleiro de gamão; na nuvem de fumo de uma shisha fumada por um velho de jallabiya, pele curtida e barba grisalha a um canto de um café; no correr tranquilo das águas do Nilo; na brisa do deserto que lhe sopra…
A cidade do Cairo é aldeia de predilecção.

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