06 junho, 2014

UMA VIAGEM NO COMBOIO PRESIDENCIAL

A manhã acordara cinzenta mas promissora, naquele longínquo domingo de primavera, lá para os lados do pinhal interior.
Brandão levantara-se cedo, contrariando o que era seu habitual. Há cerca de duas semanas havia recebido um convite para acompanhar a comitiva de chefes de estado das comarcas do Entroncamento e Castelo Branco, na segunda viagem oficial do Comboio Presidencial entre estas duas povoações. Um convite pomposo e elegante que Brandão não podia obviamente declinar.
Saiu de casa um quanto à pressa. Vestia camisa branca de finas riscas negras, calça de ganga da cor da ganga e um sapato cinza de sola castanha que lhe conferia ar solene. Ainda assim, lamentou pelo caminho ter-se esquecido da cartola e do bordão (e do fraque e do laço e da gola alta na camisa e do relógio de bolso).
Brandão chegou em cima da hora marcada. Parou a charrete – que carinhosamente apelidava de Berlingo – não longe da estação. Acabava de receber um telegrama do amigo Teixeira que alertava para a necessidade de se aviar:

BRANDAO + NAO DEMORE + COMBOIO A FICAR CHEIO +

Brandão corre em direcção à estação. Tem esperança de sentir o cheiro da fuligem e do óleo das travessas, mas em vão. Talvez o vento não esteja de feição. Atravessa-a indiferente sem reparar que está como sempre a conheceu, mas que perdera a cobertura e a cor rosa-velho de origem. Habitualmente demorava-se em longas leituras de jornal no bar. Brandão possuía um fascínio intrigante pelos edifícios ferroviários e em especial pelos seus bares. Achava-os nostálgicos e melancólicos. Estudara arquitectura no Porto com os mestres Delgado, Pedreirinho e Fabião, que nunca lhe haviam falado de tal assunto.
Brandão chega por fim à plataforma de embarque. O comboio encontra-se estacionado na linha 11. Teixeira vem ao seu encalço. Cabelo e barba grisalha, calça de ganga e casaco azul a combinar com a ocasião. Brandão repara que Teixeira também se esquecera da cartola… Segura o cigarro que retira da boca entre os dedos da mão esquerda e cumprimenta Brandão:
- Como vai meu caro amigo?
- Alegro-me em vê-lo, Teixeira. – Saúdam-se cordialmente os dois amigos.
- Viajará comigo e com os meus confrades no Salão dos Ministros.
Brandão não se surpreende. Teixeira era um homem influente. Um editor de reconhecidos méritos no seu país e além fronteiras. Um exímio poliglota de dialectos arcaicos como o russo ou o espanhol, fruto das suas longas estadas em Minsk e Chihuahua – ainda que Brandão nunca o tivesse escutado pronunciar uma única palavra em qualquer uma dessas línguas estranhas. Brandão desconfiava ser igualmente fluente no inglês, arranhar o francês e ser capaz de pedir um bom vinho de Bergstrasse em Alemão.
- Vá! Tem ainda tempo para dar uma olhadela ao comboio antes de partirmos. – Diz Teixeira a Brandão sabendo do seu fascínio por comboios.


A locomotiva aprumava-se já na frente, fumegante. Brandão estranha a cor laranja listada de branco. À retaguarda desta, perfilavam por ordem o Furgão, o Salão do Chefe de Estado – ornado com o brasão da presidência –, o Salão dos Ministros, o Salão da Comitiva e Segurança, o Salão Restaurante e a Carruagem dos Jornalistas. Todos num azul imaculado rasgado por duas listas vermelhas que alinhavam com a parte inferior das janelas e das portas.
Brandão sentiu-se entusiasmado. Há muito que sonhara viajar no Comboio Presidencial.


Teixeira chama-o da plataforma. A filarmónica dá as boas-vindas aos chefes de estado e restante comitiva. Teixeira não se detém na melodia e encaminha o amigo ao interior do comboio. Brandão está visivelmente admirado. Surpreendem-no as madeiras que julga de mogno, as loiças finas do W.C., as alcatifas vindas da Alemanha, os cadeirões de um verde como já não se usa, os veludos, as redes dos guarda-malas encomendadas a uma peixeira da Póvoa de Varzim.
Os dois amigos acomodam-se no primeiro camarote contíguo ao salão comum. Um camarote espaçoso que comunicava com um outro seu simétrico, de assento largo o suficiente para servir de cama, com dois travesseiros cilíndricos, possuindo num dos cantos um pequeno armário de duas gavetas basculantes sobrepostas, contendo cada uma respectivamente, um lavatório e um penico que mais se assemelhava a uma molheira… Os confrades do amigo Teixeira não tardaram a chegar. Primeiro o Senhor Amaro – homem viajado, de bigode farfalhudo e uma sacola de um museu internacional a atestar das suas andanças pelo estrangeiro. Pouco depois chega o Senhor Barradas – professor e intelectual. Vem acompanhado de sua mãe – senhora de estatura baixa e elegante, saia escura, camisa florida, casaco rosa e óculos a condizer. Traz o cabelo imaculadamente aprumado. Tem uma expressão maternal e afectuosa. Ninguém mais do que ela viera a condizer com a ocasião. Como se fosse ela a herdeira desta história.


O comboio silva. Toda a comitiva terá já embarcado e a viagem tem por fim início.
À passagem por Almourol já o sol dá ares da sua graça. É um privilégio circular de janela aberta por esta margem junto ao Tejo.
As conversas no interior dos camarotes giram em torno do comboio:
- Sabia o amigo porventura, que este comboio serviu os chefes de estado na nação entre os anos de 1910 e 1970?
- Pois com certeza! Possuía uma tripulação permanente de dezoito pessoas!
- É de facto curioso, não é?! Este comboio terá acompanhado todo o cortejo fúnebre de Oliveira Salazar até Santa Comba Dão. - Vai-se comentado no salão.


Abrantes não fica longe e o nosso comboio detém-se novamente depois de o ter feito em Praias do Ribatejo.
Brandão espreita a estação da janela oposta ao seu camarote. De entre os convivas que se apearam na plataforma, reconhece o amigo Raposo – repórter de prestígio e de boas relações. Estará ali por certo com o fito de cobrir a viagem para o seu periódico.
Brandão decide descer e cumprimentá-lo.
- Raposo! Que surpresa encontrá-lo aqui, meu velho amigo.
- Amigo Brandão. Tão pouco o sabia na nossa companhia.
- É uma honra. – Atira Brandão.
- Onde viaja? Já conhece todos os recantos deste comboio fantástico? – Inquire Raposo.
- Confesso que ainda não me aventurei fora do Salão dos Ministros.
– Ora, ora. Venha daí! Vou mostrar-lhe tudo.
Raposo leva o amigo atrás de si. Primeiro visitam o Salão dos Chefes de Estado. Viera da Alemanha depois dos outros e a sua pintura verde original fora entretanto substituída. O interior é constituído por vestíbulo; salão e aposentos para o Chefe de Estado, comitiva e criado e cozinha. Possuía cristais da Rosenthal.
À retaguarda, a Carruagem dos Jornalistas é a mais distinta de todas. Possivelmente por ter sido a última a incorporar o Comboio Presidencial. Assemelha-se em grande parte a uma vulgar carruagem de compartimentos. Tem o interior pintado de um verde pálido e possui no corredor aquilo que Brandão julga serem duas chaminés para o fumo do cigarro (embora talvez não passe de um qualquer sistema de ventilação). Imediatamente a seguir fica o Salão Restaurante. A azáfama na cozinha é evidente. Acedendo através de portas recortadas por um vidro fosco de forma elíptica (bem ao gosto da época), o salão restaurante apresentava mesas de tampos de um verde igual ao visto anteriormente e cada uma possuía um belíssimo candeeiro junto à janela.
Já quanto ao Salão da Comitiva e Segurança, pouco havia que o diferenciasse do dos Ministros.


Depois de se despedir do amigo, Brandão regressa ao camarote.
Criados de uniforme irrepreensível servem os aperitivos. Brandão pede um Sauvignon Blanc. Tem para si, que nenhuma viagem de comboio estará verdadeiramente completa sem um bom vinho como companhia.
Não tarda a que o comboio dê entrada na estação de Belver para nova paragem.
Do ponto onde se encontram mal se avista o castelo. Brandão procura-o na plataforma. Na verdade não se avista de todo. É uma pena. Condiria na perfeição com o quadro formado pelo rio, estação e comboio.
Enquanto aguardava ordem de marcha, Brandão foi colocar-se à cauda do comboio. Procurava um ponto de onde lhe fosse possível observar toda a comitiva. A criada da cozinha espreita pela janela; os cavalheiros agrupam-se em conversas de estado (a todos falta a cartola…); há mulheres de vestidos sumptuosos e jóias caras mas não as encontra; jovens condessas de saia pregueada, decote cavado deixando perceber ligeiramente os ombros, adorno ao pescoço e brincos de pérola.
Brandão lamenta a falta do cachimbo que nunca fumou. Seria o momento indicado para umas belas baforadas.


Depois de ceder passagem ao comboio expresso com destino à capital da metrópole, o Presidencial retoma por fim a sua marcha. Ao longe já se avistam as Portas de Ródão. Estreitam o Tejo como se o quisessem sufocar. Por aqui há grifos, cegonhas-pretas e milhafres-reais.
Teixeira aproveita os últimos quilómetros antes da chegada a Castelo Branco para uma leitura de jornal. Brandão está em crer que as circunstâncias o convidariam a fazer o mesmo, caso o tivesse trazido também. De Ródão a Castelo Branco já não há Tejo que inspire a viagem.


O comboio abranda. Passa o depósito de água, a rotunda e cocheira das locomotivas, o armazém de carga. 
Da estação, ecos de boas vindas chegam de uma outra filarmónica: a da concertina. Há bailarico e enorme entusiasmo na estação. A comitiva abandona.
Saudado pelos imensos populares que o vieram esperar, o Comboio Presidencial partirá agora rumo ao século XXI.

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