07 julho, 2014

CRÓNICAS DO NILO #6 - ALEXANDRIA



Deixaríamos o Cairo ao início da tarde daquele dia, depois de uma manhã na companhia do amigo Ossama que nos levou a visitar o seu atelier de cerâmica, e nos salvou a viagem de comboio até Alexandria, quando tudo já apontava para um par de horas numa minivan claustrofóbica e a alta velocidade.
Em tempos não muito distantes, as ligações ferroviárias entre o Cairo e Alexandria faziam-se praticamente a uma média de dois comboio por hora. Actualmente encontram-se reduzidos a menos de metade e logo por azar, hoje já não há lugares disponíveis em nenhum comboio… o amigo Ossama bem tenta, mas na bilheteira comum é impossível conseguir bilhetes. Felizmente que por aqui tudo se resolve – especialmente quando em beneficio de um turista.
Já do lado de fora da estação – amaldiçoando eu todas as ‘primaveras’ – uma jovem que se terá apercebido da situação interpela Ossama e sugere-lhe que nos leve a uma bilheteira especial e que faça valer o nosso ‘estatuto’ de turistas. Diz que há sempre lugares que não são vendidos nos comboios.
Numa das alas do edifício, descendo por uma meia dúzia de degraus, lá se encontrava a bilheteira: ar de recém-inaugurada, plásticos por remover dos alumínios sem riscos, layouts novos e funcionários sem clientes. Ossama explica a nossa situação. O funcionário volta a dizer que todos os comboios se encontram lotados… e então sorri. Comunica-nos o preço e emite manualmente uma espécie de bilhete. O impossível faz-se simples rapidamente. Salvou-se o dia!
A estação Ramses é um edifício imponente: fachada simétrica de três pisos, ornamentos tipicamente mouriscos, azulejos de um azul que nem céu e uma torre ao canto direito de onde sobressai o relógio e a dupla janela em arco quebrado, e do cimo da qual se hasteia a bandeira egípcia. No seu interior, o átrio é majestoso: do centro do tecto – seguro por um conjunto de pilares como troncos de palmeira – cai uma pirâmide alongada que nem estalactite, que desce como se viesse pingar sobre uma outra sem se tocarem. Em seu redor, uma série de folhas de palma formam uma circunferência intercalada por um azul esmeralda.
O comboio expresso para Alexandria encontra-se estacionado na linha 3.



É fim de tarde quando descemos em direcção à baia. Há um claro perfume a mediterrâneo, a mar salgado. Uma aragem refrescante que sopra na curva em quarto minguante da marginal. É indubitavelmente distinta a cidade de Durrell (ainda que nunca tenha tido vagar de o ler). Alexandria é de um outro Egipto. Ou talvez apenas de uma outra geografia; aquela que une os povos pelo mar que os mantém apartados.
À esquerda da praça Saad Zaghloul – um dos maiores defensores da independência egípcia sobre o domínio britânico – o lendário hotel Cecil, com as suas palmeiras de fronte para a fachada principal, o rendilhado da cornija fazendo lembrar uma fortificação, e o caiado bege imaculado que a tinge, é ele também a Alexandria de um outro tempo conservado às areias do deserto.
Há uma luz crepuscular a invadir esta espécie de anfiteatro de prédios mais ou menos altos, esplanadas e cafés carismáticos. Alexandria é de resto, bastante popular pelos seus históricos cafés dos quais se destacam Pastroudis – lugar de encontro das personagens do Quarteto de Alexandria – ou o Athineos, com a sua decoração anos quarenta e motivos gregos, onde paro para uma cerveja antes do jantar, com vista sobre este quase lago formado pelo porto oriental.
Sigo a par da linha do eléctrico até me perder nas ruelas estreitas, pardacentas e de cheiro a peixe – daquelas que imaginamos repletas de gatos de espinhas entre os dentes e olhos arregalados à nossa passagem. Procuro um tal de Hood Gondol, recomendado pelo guia para o Médio Oriente e onde aparentemente é possível jantar uma bela dose de marisco a preço de saldo.
Cá fora, um estendal de camarões, amêijoas, calamares, peixe panado, assado e uma fartura de outras opções altamente apetitosas, convidam a entrar. É noite e falta-me apenas a vista sobre o mar e o ‘fino’ borbulhento para acompanhar, e nada disto ficaria a dever às credenciais de um Alberto lá para os lados da Torreira.



O amigo Ossama é mesmo como os amigos! Quando partimos do Cairo, prometeu ligar a um dos seus que vive em Alexandria, para nos acompanhar e nos dar a conhecer a cidade pelas mãos de quem a habita.
No dia seguinte, Gaber – o amigo – faz questão de se encontrar connosco bastante cedo. Às nove da manhã a cidade parece ainda dormir.
Gaber espera-nos no seu Lada branco. Sendo sexta-feira, quer levar-nos ao mercado de animais que se realiza apenas uma vez por semana.
No mercado, o trânsito é caótico entre automóveis, peões, eléctricos e vendedores que estenderam as suas bancas em plena rua, para lá dos passeios. Homens e mulheres de véu e bochechas inchadas vendem sobretudo aves. Patos, pintainhos e galinhas, que depois de transportados em gaiolas de madeira de folha de palmeira, são expostos sob uma espécie de rede mosquiteira claustrofóbica. Mas há um pouco de tudo, desde gatos a pequenas serpentes… e carrascos, que sobre os cepos, esgrimindo as suas lâminas afiadas, fazem rolar cabeças de coelhos e galinhas.



Seguimos em direcção ao porto. À passagem pela lota o cheiro a peixe é bolorento. Pescadores remendam as redes na praia junto aos seus barcos. Gaber leva-nos até perto da fortaleza, de formato quadrangular, torres cilíndricas e cor bistre, mais parecendo um castelo de areia. Há pescadores de cana em riste, pequenas embarcações de passeio atracadas no pequeno porto, uma série de bancas de souvenirs ainda por abrir e turistas japoneses de disparo fotográfico rápido.




Partimos para a outra ponta da cidade. Corremos toda a marginal – numa linha que se estende por mais de vinte quilómetros de hotéis, restaurantes e cafés que ocupam as praias e as privam. No Egipto, poucas são as praias públicas… Há vendedores de tremoços e amendoins aqui e além.


Do outro lado, um enorme e verdejante parque parece rematar a cidade. O ambiente é familiar e descontraído. Gaber confessa-nos ser o seu lugar de eleição. Todas as sextas-feiras, sai de casa bem cedo com a esposa e a filha e vem passear pelo parque. Gosta particularmente de uma zona ajardinada em frente ao palácio Montazah, de onde vê o mar entrar para as muitas baias que servem de praia para a gente rica, como por inúmeras vezes faz questão de referir.
Já a tarde se apruma quando regressamos ao corrupio da cidade. Pelo caminho interpelo o meu anfitrião sobre questões tão mundanas como o seguro automóvel.
- Não precisamos disso. – Diz-nos Gaber.
- Como fazem quando há acidentes? – Pergunto eu algo surpreendido.
- Acidentes?! Não temos acidentes. São só pequenos toques. De quatro em quatro anos levamos por norma o carro para uma revisão. E é só. Porque nos haveríamos de chatear com pequenos toques?



Gaber é um zeloso anfitrião. No seu apartamento – certamente grande para a maioria dos egípcios – sob o lustre barato que pende do tecto, dispôs uma mesa farta que faz questão que comamos para lá do limite dos nossos apetites. Talvez seja desrespeitoso recusar ou receará ele de nós algum acanho. Faz-nos companhia a filha e a esposa, professora primária, de sorriso largo envolto no véu púrpura.
Quando terminado o almoço, voltaremos à rua. Apesar do trato e da ausência de qualquer constrangimento durante toda a refeição, Gaber, de forma discreta e quase previsível, não consente que a esposa e a filha nos acompanhe…

Perto de sua casa, a rua da esquadra de polícia está cortada ao trânsito, e sacos de areia empilhados servem de escudo a vigias armados até aos dentes. Os polícias e militares no Egipto fazem-me tremenda confusão pelo seu desleixo e ausência de brio. Parecem pelintras. Têm a farda mal amanhada, a camisa por fora das calças, as botas desapertadas – isto quando não estão de chinelos e meias – vestem à civil como quem vem de assentar tijolo, não inspiram respeito, são petulantes, exibem a arma com prepotência. Estou em crer que só o excesso de poder de que auferem, pode explicar tamanha falta de bom senso e disciplina.
Gaber parece sempre preocupado connosco e em especial com o nosso estômago. Leva-nos à pastelaria, à banca de sumos, ao mercado de fruta. Pergunto-me se o faz por mera gentileza ou por estranhar que não tenhamos um desfastio de tal tamanho. Os egípcios são ávidos lambareiros.


Gaber é ceramista numa empresa de moldes. Trabalha na roda com perfeição. No entanto, comprou uma máquina de corte computadorizada e criou o seu próprio negócio, no fundo de um portão de garagem algo enferrujado, num qualquer bairro poeirento dos arredores de Alexandria, possuindo um quase ar de clandestino.
Os impostos no Egipto são penosos. Desconta-se para tudo incluindo para o exército, que detém quarenta por cento da economia nacional…
No final desse dia, depois de voltarmos a casa de Gaber para as despedidas, faz questão de nos deixar na minivan que nos leve até ao nosso hotel, apesar da minha insistência em ir de eléctrico. Ameaça-me com perigos que julgo desmedidos.
É por vezes difícil explicar ao nosso anfitrião, num país onde as condições de vida são inferiores às que julgam ser as nossas, que não só não temos qualquer problema em experienciar o seu quotidiano, como fazemos questão disso – havendo porventura nisso algo de perverso. Querem presentear-nos com o melhor e pergunto-me agora porque faço tanta questão numa modéstia sem sentido, quando a simpatia de aceitar o que me querem oferecer, pode ser mais verdadeiro do que viajar num eléctrico decrépito só porque é assim que por lá se viaja.
Gaber fez questão de garantir que não gastaríamos um único cêntimo nesse dia, deixando-me com a sensação que retirou mais satisfação disso do que nós, que já retiramos muita. A hospitalidade árabe não tem limites.

No dia seguinte deambularíamos pela cidade descomprometidos. Um enorme aparato em frente ao tribunal causava a desconfiança e a curiosidade dos habitantes. Um qualquer julgamento de altas individualidades relacionadas com a Irmandade Muçulmana. Um ou outro rebentamento parece ter-se feito ouvir pela cidade, mas confesso a minha distracção relativamente a esses factos. Lamento contudo o encerramento da Biblioteca, que segundo consta, tornou-se norma que assim se encontre. Lamento que Alexandria tenha acabado por não se aproximar das expectativas que lhe havia confiado. Não ter encontrado a cidade cosmopolita que esperava, apesar da aragem mediterrânica e dos seus inúmeros cafés onde de facto se está bem, mas não melhor que em qualquer outro no Cairo. Contudo, será aí que se pode encontrar o melhor de Alexandria, tal como no resto do país e apesar das diferenças apontadas. Na atmosfera, no chá, no jogo, na conversa que flui entre baforadas de shisha.

Sem comentários:

Enviar um comentário