17 julho, 2014

CRÓNICAS DO NILO #7 - LUGARES DE SILÊNCIO



“Isto não é o fim, não é sequer o começo do fim, mas é talvez, o fim do começo.”
Foi com estas palavras, que Winston Churchill descreveu a importância da vitória aliada em El Alamein. O deserto ao largo da pequena cidade a oeste de Alexandria, foi palco da maior batalha entre tanques de toda a II Guerra Mundial. A sua importância foi de tal maneira significativa, que Churchill diria ainda mais tarde, que “antes de Alamein nunca tivemos uma vitória, depois de Alamein, nunca tivemos uma derrota.”

A história da II Guerra Mundial é uma espécie de fetiche. Os seus contornos são tão sórdidos que custa acreditar, sendo talvez seja por isso, que me causam tanta admiração e interesse.
El Alamein dista apenas cerca de 100 quilómetros a oeste de Alexandria. Contudo, a viagem é incómoda – como já o são para mim, todas as viagens que tenho de fazer em minivans de condutores demasiado apressados. Há um areal que se estende a todo o comprido – ou não fossemos nós a par do mediterrâneo – mas que raramente se avista, encoberto pelos inúmeros resorts que lhe fazem frente.  O céu está fechado.
Informara-me mal. Apenas o cemitério da Commonwealth e um pequeno museu – fechado! – se encontram aqui. Os cemitérios das ‘forças do eixo’ distam ainda alguns quilómetros.
Não há no entanto por que lamentar. Os cemitérios de guerra são em tudo idênticos: um jardim de lápides e suspiros, de frases de despedida curtas como as almas que evocam. Por entre oliveiras, jazem corpos de soldados a quem roubaram – mais que a vida – a juventude e a alegria. Um campo de pedras alinhadas como peças de dominó prontas a serem derrubadas numa coreografia compassada. Custa-me crer que no verão dos meus 18 anos, tenha vestido os calções e os chinelos, e, de cerveja na mão, me tenha sacudido em frente a um palco lá para os lados da Zambujeira do Mar, enquanto que estes homens – porque nunca tiveram oportunidade de ser o puto de 18 anos que eu fui – se batiam nesse Verão e Outono de 42, frente a um contingente de tanques e artilharia inimiga, por uma causa que certamente muitos deles, desconheciam a dimensão.


Seguiríamos mais tarde para Marsa Matrouh a caminho do remoto oásis de Siwa. O comboio também já chegou a estas paragens, mas como tem vindo a acontecer um pouco ao longo da viagem, já não é possível fazê-lo.
Ficaremos apenas uma noite. Marsa Matrouh não é mais que um ‘mini Algarve’ onde os egípcios vêm passar as suas férias, com prédios de frente-mar, caros, vazios como a marginal à sua frente e em remodelações nesta altura do ano.
Ninguém parece falar inglês.
Estamos longe do Cairo. A metade da distância da fronteira Líbia. Marsa Matrouh parece-me um bastião islamita; por todo o lado há símbolos da Irmandade e dos Salafistas, e o general Sisi parece enfrentar aqui alguma dificuldade em espalhar os seus cartazes propagandistas. Há mulheres totalmente cobertas de negro que nem vultos. Parecem a morte…
Mal refeito ainda dos meus pensamentos sobre os soldados tombados no cemitério de El Alamein, avisto na penumbra, do outro lado da rua onde janto já a noite caíra, o rosto suado de uma criança. Não terá mais de dez anos, cabelo riçado, sorriso tímido de menino e uma destreza expedita na forma como lança o pão para dentro do forno depois de borrifado com água, e manuseia a pá para os conduzir e retirar de lá. Será esta a sua guerra – privado às brincadeiras da idade com os amigos que certamente do mesmo, privados estão – numa banca de rua coberta por um tapete sobre o qual faz arrefecer a fornada, enquanto aguarda novo freguês.
Há esplanadas abertas ininterruptamente. Consigo avistar umas quantas da minúscula varanda que se abre das portadas azuis estilo colonial do nosso quarto. Têm azulejos brancos nas paredes, e em todas elas giram ventoinhas de tecto, excepto nas montadas a céu aberto sobre o separador central da avenida. Vê-se futebol por entre copos de chá. Estranha-se a presença dos forasteiros, mas não agora que lá não estamos. Ocasionalmente, uma mulher de rosto coberto mendiga de mesa em mesa. Fora isso raramente se as vê. Não é nas esplanadas! É nas ruas! Nas esplanadas também não…


Ainda da varanda, dou por mim a pensar nas coisas em que eu próprio reparo, a maioria delas insignificantes. Os lugares estão repletos destas coisas insignificantes que marcam o tempo, passageiras e mutáveis. São a história dos lugares. Quando se visita um mesmo lugar com uma diferença de tempo alargada, não poderemos dizer que ali já havíamos estado. As coordenadas são as mesmas, mas a história será sempre outra porque as insignificâncias se alteraram. Isso, ou sou só eu a divagar.

Partiremos para Siwa manhã cedo. De Marsa Matrouh não ficarão saudades, apesar da simpatia do proprietário daquela espécie de pensão onde pernoitamos num apartamento tão miserável que dormimos no sofá sobre o saco-cama aberto. Esperam-nos uma mão cheia de horas e talvez mais, deserto adentro até as nascentes quentes do oásis mais remoto do Egipto.

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