“Isto não é o fim, não é sequer o começo
do fim, mas é talvez, o fim do começo.”
Foi com estas palavras, que Winston Churchill descreveu a importância da
vitória aliada em El Alamein. O deserto ao largo da pequena cidade a oeste de
Alexandria, foi palco da maior batalha entre tanques de toda a II Guerra
Mundial. A sua importância foi de tal maneira significativa, que Churchill
diria ainda mais tarde, que “antes de
Alamein nunca tivemos uma vitória, depois de Alamein, nunca tivemos uma
derrota.”
A história da II Guerra Mundial é uma espécie de fetiche. Os seus contornos são tão sórdidos que custa acreditar,
sendo talvez seja por isso, que me causam tanta admiração e interesse.
El Alamein dista apenas cerca de 100 quilómetros a oeste de Alexandria. Contudo,
a viagem é incómoda – como já o são para mim, todas as viagens que tenho de
fazer em minivans de condutores
demasiado apressados. Há um areal que se estende a todo o comprido – ou não
fossemos nós a par do mediterrâneo – mas que raramente se avista, encoberto
pelos inúmeros resorts que lhe fazem
frente. O céu está fechado.
Informara-me mal. Apenas o cemitério da Commonwealth
e um pequeno museu – fechado! – se encontram aqui. Os cemitérios das
‘forças do eixo’ distam ainda alguns quilómetros.
Não há no entanto por que lamentar. Os cemitérios de guerra são em tudo
idênticos: um jardim de lápides e suspiros, de frases de despedida curtas como
as almas que evocam. Por entre oliveiras, jazem corpos de soldados a quem
roubaram – mais que a vida – a juventude e a alegria. Um campo de pedras
alinhadas como peças de dominó prontas a serem derrubadas numa coreografia compassada.
Custa-me crer que no verão dos meus 18 anos, tenha vestido os calções e os
chinelos, e, de cerveja na mão, me tenha sacudido em frente a um palco lá para
os lados da Zambujeira do Mar, enquanto que estes homens – porque nunca tiveram
oportunidade de ser o puto de 18 anos que eu fui – se batiam nesse Verão e
Outono de 42, frente a um contingente de tanques e artilharia inimiga, por uma
causa que certamente muitos deles, desconheciam a dimensão.
Seguiríamos mais tarde para Marsa Matrouh a caminho do remoto oásis de
Siwa. O comboio também já chegou a estas paragens, mas como tem vindo a
acontecer um pouco ao longo da viagem, já não é possível fazê-lo.
Ficaremos apenas uma noite. Marsa Matrouh não é mais que um ‘mini Algarve’
onde os egípcios vêm passar as suas férias, com prédios de frente-mar, caros,
vazios como a marginal à sua frente e em remodelações nesta altura do ano.
Ninguém parece falar inglês.
Estamos longe do Cairo. A metade da distância da fronteira Líbia. Marsa
Matrouh parece-me um bastião islamita; por todo o lado há símbolos da Irmandade
e dos Salafistas, e o general Sisi parece enfrentar aqui alguma dificuldade em
espalhar os seus cartazes propagandistas. Há mulheres totalmente cobertas de
negro que nem vultos. Parecem a morte…
Mal refeito ainda dos meus pensamentos sobre os soldados tombados no
cemitério de El Alamein, avisto na penumbra, do outro lado da rua onde janto já
a noite caíra, o rosto suado de uma criança. Não terá mais de dez anos, cabelo riçado,
sorriso tímido de menino e uma destreza expedita na forma como lança o pão para
dentro do forno depois de borrifado com água, e manuseia a pá para os conduzir
e retirar de lá. Será esta a sua guerra – privado às brincadeiras da idade com
os amigos que certamente do mesmo, privados estão – numa banca de rua coberta
por um tapete sobre o qual faz arrefecer a fornada, enquanto aguarda novo freguês.
Há esplanadas abertas ininterruptamente. Consigo avistar umas quantas da minúscula
varanda que se abre das portadas azuis estilo colonial do nosso quarto. Têm azulejos
brancos nas paredes, e em todas elas giram ventoinhas de tecto, excepto nas
montadas a céu aberto sobre o separador central da avenida. Vê-se futebol por
entre copos de chá. Estranha-se a presença dos forasteiros, mas não agora que lá
não estamos. Ocasionalmente, uma mulher de rosto coberto mendiga de mesa em
mesa. Fora isso raramente se as vê. Não é nas esplanadas! É nas ruas! Nas
esplanadas também não…
Ainda da varanda, dou por mim a pensar nas coisas em que eu próprio reparo,
a maioria delas insignificantes. Os lugares estão repletos destas coisas insignificantes
que marcam o tempo, passageiras e mutáveis. São a história dos lugares. Quando se
visita um mesmo lugar com uma diferença de tempo alargada, não poderemos dizer
que ali já havíamos estado. As coordenadas são as mesmas, mas a história será
sempre outra porque as insignificâncias se alteraram. Isso, ou sou só eu a
divagar.
Partiremos para Siwa manhã cedo. De Marsa Matrouh não ficarão saudades,
apesar da simpatia do proprietário daquela espécie de pensão onde pernoitamos
num apartamento tão miserável que dormimos no sofá sobre o saco-cama aberto. Esperam-nos
uma mão cheia de horas e talvez mais, deserto adentro até as nascentes quentes
do oásis mais remoto do Egipto.
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