Os apelativos postais do oásis de Siwa, não fazem jus ao que neles se vê.
Há mais para lá das piscinas naturais rodeadas de palmeiras; das ruínas ocres
no sopé do monte arenoso da mesma cor, que se estende até ao palmeiral, que se
estende até ao lago, que se estende até um mar de areia… Há mais, mas não é
evidente.
Siwa é o oásis mais remoto e distante daquilo a que chamam a Rota dos Oásis do Deserto Oeste. Fica
poucos quilómetros a leste da vizinha Líbia, a mais de cinco horas de Bahariya
– um outro oásis deserto adentro – e a mais de 300 quilómetros a sul de Marsa
Matruh. Tem dialecto próprio e gente afável e inúmeras nascentes de água quente.
Quando o autocarro atravessa as primeiras casas, depois de centenas de
quilómetros de areia, o sentimento é de uma certa desilusão. Deixara-me
encantar pelas imagens maioritariamente tiradas de um ponto de vista elevado, e
parecia-me agora, que o olhar a metro e setenta do solo poderia não ser assim tão
aprazível. Não percebia o que me faltava. Não me parecia um oásis – pese embora
nunca ter estado em nenhum e ser talvez esse precisamente o problema: o
desajuste da realidade com uma ideia pré concebida.
Descemos do autocarro. Que pena ter criado tão grande expectativa… Meia
dúzia de lojas e cafés numa rua, a grande mesquita, a fortaleza de Shali nas
suas costas e a praça do mercado ali ao centro, de frente para as suas ruínas,
repleta de mais lojas e restaurantes.
Instalo-me. A noite cai apressada. Ao que parece há um mítico restaurante
mesmo no centro da praça: o Abdu.
Mohammed – o recepcionista – sugere que depois do jantar, voltemos ao hotel
para seguir com ele até um pequeno café que possui a sua própria piscina
proveniente de uma nascente de água quente que ali brota.
O Abdu não é mais que uma
esplanada coberta por uma paliçada suportada por quatro colunas de troncos de
palmeira. Tem uma luz convidativa, as paredes cobertas de pequenas pedras. Está
cheio. Há algo de familiar no ambiente.
Ahmed vem atender-nos. Tem os olhos pintados de negro e um olhar fatigado. Traz
um turbante de cores vermelho e branco – tipicamente berbere – e uma espécie de
jallabiya de inverno, listada a
castanho e bege. Fala calmamente e de forma gentil. Parece já nos conhecer, de
tal maneira que no final da refeição, nos convida para uma festa no dia
seguinte. Estranhamos tão rápida afinidade, mas o certo é que já havíamos sido
alertados para a genuína simpatia do povo de Siwa. A minha decepção inicial
estava prestes a mudar…
Mohammed leva-nos ao tal café nas imediações do deserto. O jipe segue por
ruas empoeiradas e de luz amarela, até se perder, para lá dos limites do
povoado, em sinuosos caminhos escuros, repletos de estrelas e impossíveis de
decorar.
À entrada arde uma fogueira ao redor da qual estão dispostas algumas
cadeiras. Imediatamente à direita fica a piscina fumegante, onde uma mulher se
banha completamente vestida e de cabelo tapado por um lenço branco, intimidando
qualquer ocidental a entrar ali com os seus indecoros biquínis. Já no dia
seguinte, iríamos presenciar situação idêntica na nascente de Cleópatra, quando
um grupo de estudantes em férias ali chegou e algumas alunas se fizeram à água,
assim mesmo vestidas sob umas três camadas de roupa, apesar dos colegas do sexo
masculino o fazerem de peito nu e em banais calções de praia…
Apesar da insistência de Mohammed para que fiquemos à vontade,
resolvemo-nos pela fogueira e pela companhia de um chá – servido em pequenos
copos e bastante doce, depois de oxigenado diversas vezes numa vai e vem entre
o copo e o bule.
Ao nascer do dia, Siwa vai lentamente revelando os seus encantos. Há
qualquer coisa de acolhedor na simples sombra das palmeiras no pátio do hotel…
Alugamos bicicletas e passamos o dia percorrendo o labiríntico jogo de ruas,
deambulando entre tamareiras e campos de cultivo até aos enormes lagos salgados
que antecedem as dunas e o grande mar de areia, e perdendo-nos mais ainda até
aí.
Um pouco por todo o lado, camufladas por entre o palmeiral a perder de
vista e as ruas entaipadas por um entrelaçado de folhas de palma, escondem-se
nascentes de água quente, borbulhentas e cristalinas. Há pombais que nem torres
cónicas, perfuradas de forma disciplinada e decorativa, de estrutura visível
como agulhas de croché espetadas num novelo de lã. Há tâmaras e azeitonas
pendendo das árvores.
As ancestrais construções – como a fortaleza de Shali ou o templo de
Alexandre ‘o Grande’ (que por aqui também terá passado) – parecem castelos de
areia abandonados aos caprichos do tempo; ao sabor do vento que lhes vai
lapidando as torres e a muralha de pequenas aberturas e aspecto áspero. Nas
imediações, as mulheres vendem cestos e artesanato local.
As pessoas são afáveis e acolhedoras. Esta hospitalidade diz-se ser
resultado da localização do oásis numa importante encruzilhada comercial do
deserto.
Sempre habituados a receber forasteiros, o povo de Siwa parece querer fazer
desse o seu elemento distintivo. Ao contrário dos outros oásis, Siwa é casa de
uma maioria berbere. Aqui as mulheres trajam de um negro que as cobre por
completo. Mantos bordados a cores com símbolos e entrançados onde predominam o
verde, o vermelho e o amarelo.
Ao cair da noite regressamos ao Abdu.
Ahmed cumprimenta-nos como se fossemos amigos de longa data. Perguntamos pela
festa mas a resposta é pouco esclarecedora. Ahmed veste o sobretudo e na
companhia de uma outra forasteira, diz-nos para subir ao táxi: uma motorizada
com um atrelado coberto onde podem viajar talvez umas seis pessoas. Não faço
ideia para onde nos dirigimos. Interrogamos a nossa nova companheira mas ao que
parece sabe tão pouco quanto nós. É polaca. Diz vir cá bastantes vezes e que
podemos ficar descansados que tudo correrá bem – não esperamos outra coisa!
Mais tarde, nessa mesma noite, Ahmed acabará por ceder gentilmente o seu
casacão à nossa companheira ao achá-la com frio. Ela dir-nos-á, que os homens
de Siwa são uns verdadeiros cavalheiros…
O táxi pára à entrada de um grande hotel. Ahmed encaminha-nos enquanto
cumprimenta alguns dos presentes no exterior. A uma das portas, segurando o
cigarro na mão esquerda, um homem de sorriso largo roda o puxador e convida-nos
a entrar. Parece-me tudo tão rápido – talvez por me ter distraído com a envolvência
do lugar –, que quando a porta se abre e espreito o interior amplo com uma
longa mesa baixa apenas, rodeada de comensais sentados no chão de pernas
cruzadas e servindo-se da farta oferta exposta, sinto estar a entrar numa cena
de filme. Aquela passagem do exterior negro da noite para a iluminada sala
desprovida de qualquer decoração, apenas com a longa mesa de onde todos se
servem e da qual somos convidados a fazer o mesmo, revelada assim como quem é
convidado a entrar na sumptuosa sala de um castelo, iluminada de inúmeras
velas, tocheiros e candelabros, vindo da penumbra dos corredores de carvalhos
que levam até ele, tem algo de surreal.
Na mesa há de tudo um pouco e todos se servem com as mãos. Um pacote de
toalhitas húmidas vai correndo entre os presentes de forma a delir o cheiro a
carneiro que se entranha nos dedos. Há mais estrangeiros. A festa é pelo
aniversário de um deles. Anna também cá está; uma italiana em pesquisas para a
sua tese de pós-graduação sobre o dialecto local; o siwi.
Terminado o jantar, todos se recostam nas almofadas e nas paredes que
envolvem a sala abobadada que confere ao espaço a particularidade de se
conseguir escutar – como se falassem nas minhas costas – as conversas em
surdina tidas no outro canto da sala – o mesmo efeito que havia experimentado em
Sintra, na sala de jantar da Casa do Cipreste, aquando da minha caminhada por
Portugal.
O que sobrou da comida é levado. As mesas ficam. Duas ou três garrafas de
vodka circulam de forma abscôndita como quem por cá faz rodar um charro. (Há um
falso moralismo muçulmano que me causa espécie ou então é só de mim.)
A música entoa pela sala; primeiro a pequena flauta, depois os jambés, o pandeiro e as palmas. Todos
cantam. À nossa esquerda, de mangas arregaçadas, Ahmed – a quem sobressai o
bigode assim de perfil –, vai ecoando as palmas, fazendo-as bater uma na outra
de forma perfeitamente simétrica. Ocasionalmente – mais como tique do que por
necessidade –, dá um jeito ao lenço que traz sobre a cabeça. Dois homens levantam-se
para dançar. Descalços, movem-se pelo centro da sala segurando as jallabiyas ou prendendo-as com o lenço
que retiram da cabeça e atam como um cinto. Têm os olhos postos nos pés, os
quadris para trás. Mexem-se como em semicírculos, de braços abertos ou meneando
a anca como se esta fosse independente aos seus corpos. Por vezes, deixam-se
cair pelo chão – pernas ligeiramente abertas e flectidas, os braços em força
como numa flexão – em movimentos que diria no mínimo insinuantes…
Ainda nessa noite, findada a festa no hotel, Ahmed levar-nos-ia para uma
outra festa às portas do deserto, onde uma vez mais, apenas se encontram homens
e mulheres turistas. Há mais álcool e outras substâncias pouco recomendadas
pelo Corão. Desta vez há também um órgão. Os homens dançam entre si; por vezes
em movimentos tão sensuais que se diria efeminados – como o homem da jallabiya parda, barriga proeminente, bigode
farto, sorriso contagiante e a testa banhada em suor, segurando delicadamente um
lenço entre os indicadores e os polegares, e fazendo-o passar sob o seu traseiro
alçado, enquanto um outro, de braços abertos em seu redor e agitando a anca, o
parece convidar.
O ambiente é de pura descontracção e autêntica festa. Pergunto a Anna se isto
se deve a algo em especial. Responde-me que não, que é assim quase todas as noites…
Por estes dias, Siwa está repleto de estudantes em férias e algumas famílias
egípcias. No dia seguinte, depois de uma tarde passada nas dunas do grande mar de areia, de presenciar o pôr-do-sol
do alto de uma delas, sentindo e recordando o constante encanto que estes
lugares infindáveis e vazios me despertam, jantamos na companhia de algumas
destas famílias, num acampamento improvisado para os Tours do deserto. Há entre os mais novos uma genuína vontade de
comunicar, repetindo em inglês as poucas palavras que sabem e prosseguindo em árabe
como se esperassem verdadeiramente que os compreendêssemos. Apesar de tudo, os
berberes de Siwa não parecem morrer de amores pelos seus congéneres árabes. Acham-nos
malcriados e sem modos.
Ainda nesse dia, recordo a situação quase caricata – não fosse a eminência da
tragédia – da criança que se afogava numa das nascentes do deserto, sob a sobra
do pequeno palmeiral e o olhar distraído de todos (e não eram poucos) os que
rodeavam a pequena piscina circular e nela demolhavam os pés, acabando por ser
retirada por um braço – num impulso – por alguém felizmente mais esclarecido.
Recordo igualmente, que me cativou a imagem e o contraste dos condutores de
jipe, depois do chá, em oração ajoelhados sobre o tapete, enquanto todos os
outros se divertiam nesse mesmo micro-oásis.
Durante estes dias, procuramos uma forma de seguir viagem directamente para
Baharia sem regressar ao Cairo. A menos que conseguíssemos companhia para
partilhar um jipe, tal vontade iria sair-nos demasiado caro. Mas como raramente
em viagem uma coisa menos boa não resulta numa realmente boa, durante as nossas
inquirições pelos diversos operadores locais, acabamos por conhecer Zait.
Zait é jovem, ar descontraído e sorriso afectuoso. Dir-me-á à nossa
despedida, que era como se já me conhecesse há imenso tempo. No último dia,
convida-nos para um chá nas margens do grande lago salgado. Em redor da
fogueira improvisada, juntar-se-ão mais três amigos debitando teorias sobre o
estado da nação, entre shots de chá e
grãos de amendoim. Um deles estudou antropologia e faz-nos um retrato interessantíssimo,
não só do porquê da situação politica do país, mas também das diferenças entre
os beduínos (a maioria egípcia) e os berberes.
O amigo de Zait explica que os berberes (predominantemente do norte do
Egipto e da região do Sinai) se caracterizam por se fixarem em lugares onde
haja água, ao contrário dos beduínos, de espírito mais alerta, que estão
permanentemente em busca dela. Em Siwa, os berberes fixaram-se na fortaleza de
Shali e ali eram capazes de viver cercados durante um ano inteiro apenas com tâmaras
e água. Apesar das tentativas, os beduínos nunca foram capazes de penetrar as
defesas berberes e tomar a fortaleza.
A agulha da conversa muda de direcção. Inquieta-me a actual situação
politica do Egipto. Interrogando-me sobre as consequências das revoluções,
sobre o caminho que o país irá seguir e sobre se alguma vez a democracia irá
aqui prevalecer.
O amigo de Zait procura explicar-me:
- O Médio Oriente sempre foi dominado por classes distintas, todas
cooperando entre si como salvaguarda do poder. Ao passo que em países como a Jordânia
ou a Síria, são famílias que – quase como reis – dominam os destinos do país, o
Egipto é uma sociedade militar – ajudando a explicar não só a popularidade de
Sisi, como possivelmente até a sua necessidade – especialmente na ausência de
educação e de numa sociedade verdadeiramente civil. – Explica. – Quanto à
revolução (a dita Primavera Árabe),
ela é sobretudo fruto das reivindicações de maior liberdade de expressão por
parte da comunicação social – em especial da Al Jezeera, apesar de sediada no
Qatar. No entanto, tudo parece ter sido deturpado e manipulado, tanto mais que,
apesar de tudo, nunca ninguém no Egipto alguma vez pensou que Mubarak pudesse
ser derrubado. – Conclui.
O sol cai sobre o lago. Zait devolve-nos ao hotel para que possamos
recolher as mochilas, jantar e tomar o autocarro nocturno de volta ao Cairo.
Presenteia-nos com dois porta-chaves e um abraço de quem fomos mais do que apenas
‘mais um’ a por aqui passar.
Terminado o jantar no Abdu, Ahmed
não deixa que partamos sem nos presentear ele também. Diz-nos para esperar e
corre à loja do outro lado da rua. Traz uma grande caixa de tâmaras em vácuo
que nos oferece de imediato.
Quero por tudo acreditar que – apesar da notória e generalizada simpatia
dos locais – não é sempre assim, e que de alguma forma fomos um pouco
especiais. Mas se assim não for – se for sempre assim e para com todos – então tanto
melhor!
É então ao despedir-me de Siwa, que compreendo por que não me apercebera de
imediato dos seus encantos; porque a maior das suas belezas, não é coisa de se
ver… é antes sim de sentir.
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