Nos
princípios de 2009, quando esboçava os contornos iniciais daquilo que viria a
ser a primeira grande viagem do projecto que intitulara: De Cabo a Cabo, Murmansk figurava nos meus planos por variados
motivos: porque era, aparentemente, a cidade com ligação ferroviária de
passageiros mais a norte do mundo; porque era possível lá chegar vindo
directamente da Noruega; porque garantia uma promissora viagem até São Petersburgo
ou Moscovo e a experiência de mais de uma noite seguida num mesmo comboio;
porque era remota, desolada, fria e lamacenta. Contudo, o plano final acabaria
por deixar a Rússia de parte e seguir pela Finlândia e pelo Báltico, mas a
vontade de viajar de comboio até Murmansk não esmoreceu e a oportunidade
acabaria por surgir cinco anos depois.
Voltara
a Moscovo pela segunda vez – tantas quantas visitara São Petersburgo sem que
conseguisse atribuir-lhe a predilecção que a maioria dos viajantes lhe confere
em detrimento da capital. Investigara bastante, mas confiava que tal como os
demais, acabaria por me render à monumentalidade de São Petersburgo e achar
Moscovo uma cidade demasiado grande, sem alma, confusa e desinteressante. Com
efeito, estes sentimentos prévios têm muitas vezes o condão de se inverterem
por a realidade não ser capaz de ir ao encontro das nossas expectativas – mesmo
que não tenhamos real consciência delas – ou superá-las, no caso de termos
poucas ou nenhumas. Por a minha convicção de sofá, desdenhar tanto de Moscovo,
acabaria por a preferir a São Petersburgo, repetindo com prazer todas as voltas
a que a cidade convida.
Terminavam
mais uns dias pela cidade. (É bom repetir os sítios que conhecemos porque nunca
os vemos da mesma maneira, e porque há sempre lugares a descobrir e outros onde
tão bem sabe voltar.) Chegava à estação de Leningradsky já muito perto da hora
de embarque. O comboio perfilava-se a todo o comprimento da plataforma. Lá
dentro, enquanto prosseguia em busca da carruagem 8, via já as famílias
inteiras que se apoderavam dos compartimentos, faziam a cama, vestiam o pijama
e se recriavam em chinelos de dedo. Partilharei o espaço com uma mãe,
respectiva filha e um jovem imberbe que diria saído da tropa. Traz uma sacada
de latas de cervejas que beberá assim mesmo: quentes. Segue igualmente até
Murmansk ao passo que as companheiras do ‘andar de baixo’ ficarão um pouco
antes.
É
Agosto. A noite é quente e húmida. Transpiro sob o peso da mochila pelo simples
dever de a carregar. Acomodo-me na cama superior esquerda, como prefiro – posso
dormitar até à hora que bem entender, que nem incomodo ninguém nem ninguém me
incomoda a mim. No corredor, de mão dada por entre a janela aberta, um casal
despede-se demoradamente como se a separação não dependesse deles mas de um
qualquer infortúnio ao qual são alheios, que inevitavelmente chegará com a
partida do comboio, desejando secretamente que algo o adie ou impeça e assim
possam permanecer, sem culpa, de mão dada para lá do tempo que lhes é
destinado. Ela traz o olhar desconsolado – combinando na perfeição com o
vestido azul e o salto alto, escolhidos propositadamente para a ocasião, e para
deixar nele uma saudade sedutora e duradoira. Reparo mal nele, tem o aspecto da
maioria dos russos: forte, cabelo rapado e sorriso duvidoso. Ainda o comboio
ganha embalo já ele virou costas deixando-a num suspiro. Nesse instante, tenho
a impressão de recuar no tempo e fico a imaginar as rodas de uma locomotiva a
vapor, ganhando velocidade à força dos movimentos oblíquos das barras,
alavancas e puxavantes que as deslocam
– como que as empurrando para a frente (e fazendo-o efectivamente) –; o fumo e
a fuligem a inundarem a gare; o vapor de água que se liberta da caldeira a
varrer a plataforma, e o ‘nosso homem’ seguindo de volta à rua no seu chapéu de
coco, redingote de caxemira cinza, cofiando o bigode e afagando o punho esférico
da bengala; enquanto ela assume o seu lugar no compartimento e retoca a maquilhagem
– pó-de-arroz, porventura – de perna cruzada, em diagonal voltada para a
janela, o ombro apoiando no encosto, o chapéu de abas escondendo-lhe o cabelo
ondulado, o decote seguro num botão esforçado e recompondo-se da tristeza.
Sinto-me
cansado. Olho a informação afixada no corredor com todas as estações e tempos
de paragem em cada uma delas: 1964 quilómetros até Murmansk, 38 horas de
viagem. Não me faltará tempo para desfrutar da jornada. Resolvo dormir. Faço a
cama com toda a destreza que adquiri com o tempo e com todas as viagens em que
tive de o fazer: sobre a cama, dobro o lençol a meio, estico para um dos lados,
subo para cima dele, estico para o outro e repito tudo com o lençol de cima. Na
casa-de-banho simulo o banho: prendo a toalha aos boxers, encosto-me ao
lavatório e inclino-me para a frente de forma a impedir que os molhe e inunde o
compartimento. Banho-me com as mãos, enxugo-me e regresso por fim à cama fresco
e confortável.
Olho
o relógio no telemóvel (queria escrever telefone
por não gostar da palavra ‘telemóvel’, mas telefone
soa ainda pior). A manhã segue a mais de meio. Adormeci sem dar por nada
(como acontece sempre, aliás, por mais ou menos que se demore a adormecer).
Estico o braço para entreabrir a cortina e espreitar pela janela. O comboio
está parado numa qualquer estação. Salto da cama, dou um jeito ao cabelo
(sempre mais fácil quando está assim grande), visto qualquer coisa e debruço-me
numa das janelas do corredor. Lá fora, na plataforma, vendem-se mirtilos e
groselhas vermelhas em pequenos baldes plásticos, aquilo que me parecem
framboesas, peixe seco de rio (provavelmente do rio Svir’, que une os lagos
Onega e Ladoga), bolachas e os snacks
habituais. Há também revistas e jornais afixados como num quiosque, pela mão de
um vendedor que montou um verdadeiro mostruário ambulante.
O
comboio estará prestes a retomar a marcha. Não tenho tempo de sair e comprar o
que quer que seja. Nos aposentos da condutora da carruagem 8 onde sigo, compro
chá e bolachas. Ao ver-me assim, desacautelado de qualquer vitualha para a
viagem ao ponto de as ter de comprar no comboio, a mãe do meu compartimento –
dizendo algo que interpreto como: ‘não precisa de comprar’ – oferece-me de
imediato o equivalente à minha aquisição do seu provimento pessoal, onde também
há frango, sal, um frasco de café solúvel e um tupperware com cubos de açúcar.
Das
janelas o céu prossegue farrusco e nada mais se vislumbra para lá das bétulas e
dos pinheiros. No compartimento ao lado – ocupado apenas por dois idosos – reza-se.
No meu lê-se, dormita-se (o nosso jovem raramente sai da cama) e vêem-se filmes
infantis. Eu por mim vou tentando registar tudo isso.
O
comboio vai parando. Lugares perdidos, ferrugentos, desordenados, escuros,
esquecidos. Da infindável fila de carruagem, raramente entra ou sai alguém a
não ser nas grandes estações onde o comboio se demora nessas paragens. Num
desses lugares, reparo na senhora ruiva, camisa e saia acima dos joelhos, que dá
sinal de partida ao nosso comboio a três linhas de distância, num casebre sem
qualquer aspecto de estação. Num outro, desço à plataforma improvisada pelo
carreiro de terra batida, de forma a precaver-me para o jantar: compro duas
embalagens de noodles com frango fora
da validade – como constataria mais tarde – aos vendedores que trazem entre
outras coisas, lagostins cozidos por que ninguém se parece interessar. Comi na
mesma. Cá dentro, a condutora da nossa carruagem – de bata vestida que nem dona
de casa – varre o corredor com uma vassoura de palha e um balde de latão, e eu
pergunto-me que tempo é este onde não há esfregona de tiras e respectivo balde
de plástico, nem aspirador sem fios.
Volto
a contemplar o exterior. Não me falta tempo para não fazer nada. Terminei de
ler o livro que trazia no que restava da manhã: O Teu Rosto Será o Último de João Ricardo Pedro. Gostei. Foi prémio
Leya em 2011 mas um tipo com três
nomes próprios tem essa obrigação. Parece-me vaidade preferir adoptar três
nomes próprios – mais parecendo que os escolheu ao acaso no meio da ladainha –
do que expor um de família. Bem se vê que não quer nada com ela.
Embalo
as horas em pensamentos parvos. Lá fora – entre a imutável paisagem de bétulas,
pinheiros e outras árvores de grande porte de que desconheço a identidade –
surgem rios negros como a noite, vagões intermináveis de mercadorias, lagos, casas
de telhados muitíssimo inclinados, mais rios. O céu permanece enevoado como se
assim estivesse eternamente, confinando estas gentes a uma tristeza sem fim.
Quando terá sido que viram o sol pela ultima vez? – Pergunto-me.
As
horas tropeçam, a noite precipita-se. O horizonte, longínquo, enche-se de
tonalidades que me fazem inclinar a cabeça para a esquerda como se estivesse a
observá-lo de pernas para o ar. Parece a inversão do que vejo quando voo.
É
manhã do último dia (o terceiro – sendo que a viagem só demora dia e meio).
Despontou soalheiro. Se nunca tinham visto o sol, é esta a oportunidade. Um
mero acaso e uma coincidência cósmica eu estar por aqui. Um sol que entra pela
janela, me fecha os olhos e me dá vontade de colar a cara ao vidro.
Nas
janelas o cenário é agora amplo. O comboio segue na margem do lago Imandra que
se estende demoradamente até às montanhas distantes de um verde de musgo seco. As
águas em ondulados brancos. Apercebo-me do vento que sopra nas árvores e as faz
baloiçar à medida que entrecortamos a floresta.
Em
Olenegorsk despeço-me de mãe e filha que aqui terminam viagem sob o sinistro
canto dos corvos no jardim. Uma estação enorme repleta de mercadorias, vagões
de carvão e petróleo, num emaranhado de linhas.
Só
agora passamos Kola – a estação que antecede Murmansk – mas a agitação típica
de chegada ao destino instalou-se logo à saída de Taybola, quase há duas horas
atrás. Os meus vizinhos andam num vai e
vem entre a casa-de-banho e os respectivos compartimentos, aperaltando-se
para a chegada. O idoso da direita vestiu a camisa sobre a camisola interior de
cavas com que se passeava pelo corredor, e as meninas do primeiro compartimento
– que seguem com os namorados de má cara – já trocaram os minúsculos calções
azuis de bainha amarela por um decente par de calças, e cobriram de lã o decote
que deixava a nu a linha de um peito volumoso. Todos – eu inclusive –
descalçaram os chinelos e enfiaram os pés em qualquer coisa com atacadores.
Da
janela, às portas de Murmansk, vislumbro o grande monumento Alyosha erigido aos
Defensores do Árctico durante a Grande
Guerra Patriótica (como é designada a 2ª Guerra Mundial na Rússia). Um colosso tipicamente soviético, de
linhas fortes, quase cubista, de um soldado envergando o seu sobretudo,
capacete e espingarda ao ombro, olhando a oeste na direcção do Vale da Glória
onde ocorreram os mais ferozes combates da campanha do árctico.
Sinto-me
num desassossego. Um misto de ânsia, regozijo e preocupação. Chegar a Murmansk;
à sua estação de frontarias e telhados de um verde menta, água-marinha, que a
neve do inverno cobre de branco salientando a agulha que se ergue da cúpula assente
num tambor cilíndrico e que segura uma estrela vermelha pentagonal, e que
tantas vezes havia espreitado nas minhas procuras; é a efectivação de uma aspiração
de longa data. No entanto, proponho-me chegar ainda hoje à Finlândia, à boleia
e por uma estrada de movimento aparentemente reduzido, o que despoleta a minha
preocupação. Não há nada digno de registo nos trezentos quilómetros entre
Murmansk e Ivalo.
O comboio detém-se por fim e eu deixo-me ficar para último, assistindo de dentro ao apear de todos os passageiros, das malas e sacos de ráfia. À minha vez, sem delongas, esperam-me três agentes da polícia que me vistoriam o passaporte e interrogam dos motivos da visita a tão remoto destino. Subo os degraus que levam à entrada da estação. Tenho um vislumbre da baia de Kola, dos estaleiros, das gruas, dos incontáveis vagões de petróleo e do cinzentismo que cobre tudo à sua volta. A cor de verão que diria de todos os lugares fustigados pela neve, pela distância e pela incúria. Procuro almoço no interior da estação. Sinto olhares curiosos e desconfiados sobre mim, atendem-me com desconsideração. Não tardará muito para que me encontra de polegar em riste nesse longo caminho até à Finlândia. Mas isso já é outra estória…
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