25 novembro, 2014

OS MAIS BELOS CAMINHOS DE FERRO (e Outras Estórias Sobre Carris) #1 - DE MOSCOVO A MURMANSK



Nos princípios de 2009, quando esboçava os contornos iniciais daquilo que viria a ser a primeira grande viagem do projecto que intitulara: De Cabo a Cabo, Murmansk figurava nos meus planos por variados motivos: porque era, aparentemente, a cidade com ligação ferroviária de passageiros mais a norte do mundo; porque era possível lá chegar vindo directamente da Noruega; porque garantia uma promissora viagem até São Petersburgo ou Moscovo e a experiência de mais de uma noite seguida num mesmo comboio; porque era remota, desolada, fria e lamacenta. Contudo, o plano final acabaria por deixar a Rússia de parte e seguir pela Finlândia e pelo Báltico, mas a vontade de viajar de comboio até Murmansk não esmoreceu e a oportunidade acabaria por surgir cinco anos depois.

Voltara a Moscovo pela segunda vez – tantas quantas visitara São Petersburgo sem que conseguisse atribuir-lhe a predilecção que a maioria dos viajantes lhe confere em detrimento da capital. Investigara bastante, mas confiava que tal como os demais, acabaria por me render à monumentalidade de São Petersburgo e achar Moscovo uma cidade demasiado grande, sem alma, confusa e desinteressante. Com efeito, estes sentimentos prévios têm muitas vezes o condão de se inverterem por a realidade não ser capaz de ir ao encontro das nossas expectativas – mesmo que não tenhamos real consciência delas – ou superá-las, no caso de termos poucas ou nenhumas. Por a minha convicção de sofá, desdenhar tanto de Moscovo, acabaria por a preferir a São Petersburgo, repetindo com prazer todas as voltas a que a cidade convida.
Terminavam mais uns dias pela cidade. (É bom repetir os sítios que conhecemos porque nunca os vemos da mesma maneira, e porque há sempre lugares a descobrir e outros onde tão bem sabe voltar.) Chegava à estação de Leningradsky já muito perto da hora de embarque. O comboio perfilava-se a todo o comprimento da plataforma. Lá dentro, enquanto prosseguia em busca da carruagem 8, via já as famílias inteiras que se apoderavam dos compartimentos, faziam a cama, vestiam o pijama e se recriavam em chinelos de dedo. Partilharei o espaço com uma mãe, respectiva filha e um jovem imberbe que diria saído da tropa. Traz uma sacada de latas de cervejas que beberá assim mesmo: quentes. Segue igualmente até Murmansk ao passo que as companheiras do ‘andar de baixo’ ficarão um pouco antes.
É Agosto. A noite é quente e húmida. Transpiro sob o peso da mochila pelo simples dever de a carregar. Acomodo-me na cama superior esquerda, como prefiro – posso dormitar até à hora que bem entender, que nem incomodo ninguém nem ninguém me incomoda a mim. No corredor, de mão dada por entre a janela aberta, um casal despede-se demoradamente como se a separação não dependesse deles mas de um qualquer infortúnio ao qual são alheios, que inevitavelmente chegará com a partida do comboio, desejando secretamente que algo o adie ou impeça e assim possam permanecer, sem culpa, de mão dada para lá do tempo que lhes é destinado. Ela traz o olhar desconsolado – combinando na perfeição com o vestido azul e o salto alto, escolhidos propositadamente para a ocasião, e para deixar nele uma saudade sedutora e duradoira. Reparo mal nele, tem o aspecto da maioria dos russos: forte, cabelo rapado e sorriso duvidoso. Ainda o comboio ganha embalo já ele virou costas deixando-a num suspiro. Nesse instante, tenho a impressão de recuar no tempo e fico a imaginar as rodas de uma locomotiva a vapor, ganhando velocidade à força dos movimentos oblíquos das barras, alavancas e puxavantes que as deslocam – como que as empurrando para a frente (e fazendo-o efectivamente) –; o fumo e a fuligem a inundarem a gare; o vapor de água que se liberta da caldeira a varrer a plataforma, e o ‘nosso homem’ seguindo de volta à rua no seu chapéu de coco, redingote de caxemira cinza, cofiando o bigode e afagando o punho esférico da bengala; enquanto ela assume o seu lugar no compartimento e retoca a maquilhagem – pó-de-arroz, porventura – de perna cruzada, em diagonal voltada para a janela, o ombro apoiando no encosto, o chapéu de abas escondendo-lhe o cabelo ondulado, o decote seguro num botão esforçado e recompondo-se da tristeza.
Sinto-me cansado. Olho a informação afixada no corredor com todas as estações e tempos de paragem em cada uma delas: 1964 quilómetros até Murmansk, 38 horas de viagem. Não me faltará tempo para desfrutar da jornada. Resolvo dormir. Faço a cama com toda a destreza que adquiri com o tempo e com todas as viagens em que tive de o fazer: sobre a cama, dobro o lençol a meio, estico para um dos lados, subo para cima dele, estico para o outro e repito tudo com o lençol de cima. Na casa-de-banho simulo o banho: prendo a toalha aos boxers, encosto-me ao lavatório e inclino-me para a frente de forma a impedir que os molhe e inunde o compartimento. Banho-me com as mãos, enxugo-me e regresso por fim à cama fresco e confortável.


Olho o relógio no telemóvel (queria escrever telefone por não gostar da palavra ‘telemóvel’, mas telefone soa ainda pior). A manhã segue a mais de meio. Adormeci sem dar por nada (como acontece sempre, aliás, por mais ou menos que se demore a adormecer). Estico o braço para entreabrir a cortina e espreitar pela janela. O comboio está parado numa qualquer estação. Salto da cama, dou um jeito ao cabelo (sempre mais fácil quando está assim grande), visto qualquer coisa e debruço-me numa das janelas do corredor. Lá fora, na plataforma, vendem-se mirtilos e groselhas vermelhas em pequenos baldes plásticos, aquilo que me parecem framboesas, peixe seco de rio (provavelmente do rio Svir’, que une os lagos Onega e Ladoga), bolachas e os snacks habituais. Há também revistas e jornais afixados como num quiosque, pela mão de um vendedor que montou um verdadeiro mostruário ambulante.
O comboio estará prestes a retomar a marcha. Não tenho tempo de sair e comprar o que quer que seja. Nos aposentos da condutora da carruagem 8 onde sigo, compro chá e bolachas. Ao ver-me assim, desacautelado de qualquer vitualha para a viagem ao ponto de as ter de comprar no comboio, a mãe do meu compartimento – dizendo algo que interpreto como: ‘não precisa de comprar’ – oferece-me de imediato o equivalente à minha aquisição do seu provimento pessoal, onde também há frango, sal, um frasco de café solúvel e um tupperware com cubos de açúcar.


Das janelas o céu prossegue farrusco e nada mais se vislumbra para lá das bétulas e dos pinheiros. No compartimento ao lado – ocupado apenas por dois idosos – reza-se. No meu lê-se, dormita-se (o nosso jovem raramente sai da cama) e vêem-se filmes infantis. Eu por mim vou tentando registar tudo isso.
O comboio vai parando. Lugares perdidos, ferrugentos, desordenados, escuros, esquecidos. Da infindável fila de carruagem, raramente entra ou sai alguém a não ser nas grandes estações onde o comboio se demora nessas paragens. Num desses lugares, reparo na senhora ruiva, camisa e saia acima dos joelhos, que dá sinal de partida ao nosso comboio a três linhas de distância, num casebre sem qualquer aspecto de estação. Num outro, desço à plataforma improvisada pelo carreiro de terra batida, de forma a precaver-me para o jantar: compro duas embalagens de noodles com frango fora da validade – como constataria mais tarde – aos vendedores que trazem entre outras coisas, lagostins cozidos por que ninguém se parece interessar. Comi na mesma. Cá dentro, a condutora da nossa carruagem – de bata vestida que nem dona de casa – varre o corredor com uma vassoura de palha e um balde de latão, e eu pergunto-me que tempo é este onde não há esfregona de tiras e respectivo balde de plástico, nem aspirador sem fios.
Volto a contemplar o exterior. Não me falta tempo para não fazer nada. Terminei de ler o livro que trazia no que restava da manhã: O Teu Rosto Será o Último de João Ricardo Pedro. Gostei. Foi prémio Leya em 2011 mas um tipo com três nomes próprios tem essa obrigação. Parece-me vaidade preferir adoptar três nomes próprios – mais parecendo que os escolheu ao acaso no meio da ladainha – do que expor um de família. Bem se vê que não quer nada com ela.
Embalo as horas em pensamentos parvos. Lá fora – entre a imutável paisagem de bétulas, pinheiros e outras árvores de grande porte de que desconheço a identidade – surgem rios negros como a noite, vagões intermináveis de mercadorias, lagos, casas de telhados muitíssimo inclinados, mais rios. O céu permanece enevoado como se assim estivesse eternamente, confinando estas gentes a uma tristeza sem fim. Quando terá sido que viram o sol pela ultima vez? – Pergunto-me.
As horas tropeçam, a noite precipita-se. O horizonte, longínquo, enche-se de tonalidades que me fazem inclinar a cabeça para a esquerda como se estivesse a observá-lo de pernas para o ar. Parece a inversão do que vejo quando voo.


É manhã do último dia (o terceiro – sendo que a viagem só demora dia e meio). Despontou soalheiro. Se nunca tinham visto o sol, é esta a oportunidade. Um mero acaso e uma coincidência cósmica eu estar por aqui. Um sol que entra pela janela, me fecha os olhos e me dá vontade de colar a cara ao vidro.
Nas janelas o cenário é agora amplo. O comboio segue na margem do lago Imandra que se estende demoradamente até às montanhas distantes de um verde de musgo seco. As águas em ondulados brancos. Apercebo-me do vento que sopra nas árvores e as faz baloiçar à medida que entrecortamos a floresta.
Em Olenegorsk despeço-me de mãe e filha que aqui terminam viagem sob o sinistro canto dos corvos no jardim. Uma estação enorme repleta de mercadorias, vagões de carvão e petróleo, num emaranhado de linhas.
Só agora passamos Kola – a estação que antecede Murmansk – mas a agitação típica de chegada ao destino instalou-se logo à saída de Taybola, quase há duas horas atrás. Os meus vizinhos andam num vai e vem entre a casa-de-banho e os respectivos compartimentos, aperaltando-se para a chegada. O idoso da direita vestiu a camisa sobre a camisola interior de cavas com que se passeava pelo corredor, e as meninas do primeiro compartimento – que seguem com os namorados de má cara – já trocaram os minúsculos calções azuis de bainha amarela por um decente par de calças, e cobriram de lã o decote que deixava a nu a linha de um peito volumoso. Todos – eu inclusive – descalçaram os chinelos e enfiaram os pés em qualquer coisa com atacadores.
Da janela, às portas de Murmansk, vislumbro o grande monumento Alyosha erigido aos Defensores do Árctico durante a Grande Guerra Patriótica (como é designada a 2ª Guerra Mundial na Rússia). Um colosso tipicamente soviético, de linhas fortes, quase cubista, de um soldado envergando o seu sobretudo, capacete e espingarda ao ombro, olhando a oeste na direcção do Vale da Glória onde ocorreram os mais ferozes combates da campanha do árctico.
Sinto-me num desassossego. Um misto de ânsia, regozijo e preocupação. Chegar a Murmansk; à sua estação de frontarias e telhados de um verde menta, água-marinha, que a neve do inverno cobre de branco salientando a agulha que se ergue da cúpula assente num tambor cilíndrico e que segura uma estrela vermelha pentagonal, e que tantas vezes havia espreitado nas minhas procuras; é a efectivação de uma aspiração de longa data. No entanto, proponho-me chegar ainda hoje à Finlândia, à boleia e por uma estrada de movimento aparentemente reduzido, o que despoleta a minha preocupação. Não há nada digno de registo nos trezentos quilómetros entre Murmansk e Ivalo.


O comboio detém-se por fim e eu deixo-me ficar para último, assistindo de dentro ao apear de todos os passageiros, das malas e sacos de ráfia. À minha vez, sem delongas, esperam-me três agentes da polícia que me vistoriam o passaporte e interrogam dos motivos da visita a tão remoto destino. Subo os degraus que levam à entrada da estação. Tenho um vislumbre da baia de Kola, dos estaleiros, das gruas, dos incontáveis vagões de petróleo e do cinzentismo que cobre tudo à sua volta. A cor de verão que diria de todos os lugares fustigados pela neve, pela distância e pela incúria. Procuro almoço no interior da estação. Sinto olhares curiosos e desconfiados sobre mim, atendem-me com desconsideração. Não tardará muito para que me encontra de polegar em riste nesse longo caminho até à Finlândia. Mas isso já é outra estória…

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