Será
certamente fácil perceber por que é que as linhas de caminho-de-ferro mais
surpreendentes são aquelas que seguem junto a cursos de água ou nas montanhas.
Para lá de todos os outros aspectos que aqui poderia enumerar, a paisagem é
parte indissociável do prazer de viajar de comboio. O caminho-de-ferro tem a
particularidade de poder abrir atalho onde nenhum outro meio de transporte o
conseguiria - pelo menos sem causar impacto. O caminho-de-ferro é o único capaz
de se imiscuir na paisagem sem a molestar.
De entre as incontáveis linhas que serpenteiam ao longo do vale de um rio, há na Europa duas que destacaria: a Linha do Douro e a Linha do Reno, entre Frankfurt e Colónia.
De entre as incontáveis linhas que serpenteiam ao longo do vale de um rio, há na Europa duas que destacaria: a Linha do Douro e a Linha do Reno, entre Frankfurt e Colónia.
Estou
à mais de uma hora preso no interior do avião (logo eu que gosto tanto disto!).
O mau tempo em Frankfurt – aparentemente mais habitual do imaginava – não nos
deixa descolar.
Talvez não seja muito comum alguém que se diz viajante,
sentir tantos calafrios na hora de subir a bordo de um avião. Deve ser talvez
como um apreciador de vinhos ter dificuldade em utilizar um saca-rolhas. Sem
abrir a garrafa, não há como provar o agradável líquido.
Disse-o já noutra ocasião mas preciso repetir-me –
porque a ideia perdesse tanto como a angústia chegado o momento do embarque.
Não sei se é medo. Se é só medo – porque algum há-de ser – mas costumo dizer
quando mo perguntam, que também não gosto particularmente de carapaus e que não
é por isso que tenho medo deles. Não gosto! Simplesmente isso. Sei que também
não gosto por ter um pouco de medo, mas é mais do que isso; não gosto da
espera, dos controlos, da paisagem a uma escala impossível de abarcar, ou do catering que, ainda por cima, nem sempre
safa a coisa.
Descolamos finalmente depois de hora e meia de
expectativa. Esperemos que São Pedro tenha já descarregado toda a sua ira sobre
Frankfurt e nos deixe finalmente voar e aterrar em segurança...
Sobre os céus, algures no caminho, o mais belo dos crepúsculos...
Um céu azul escuro – parece ganga – tingido por laivos laranjas como pinceladas
soltas sobre tela, e uma lua estreita, finíssima – parece uma banana, uma
malagueta – tão fina que dir-se-ia não ser lua, antes a lâmina de uma foice sem
cabo, tão fina que não lhe distingo as pontas afiadas.
O capitão anuncia a aterragem. A velocidade diminui, a
altitude baixa, a temperatura aumenta. Estou por fim em Frankfurt.
É uma infelicidade o tempo manter-se assim mau
(estávamos em Julho): abafado e chuvoso. Não é assim que se quer um passeio
(porque é disso que se trata por mais que eu não goste da palavra – ainda que
admita que por vezes gosto bem de passear) pelo rio.
Dirijo-me a Berlim em trabalho e aproveito a ocasião
para descobrir este que é considerada por muitos, como um dos mais belos
trajectos de comboio da Europa.
Vou
para a estação com a antecedência de quem vai à bola. Não é só o jogo – é
sobretudo o ambiente, a envolvência – e eu não quero só apanhar o comboio. Há
falta de bifanas e couratos, sirvo-me de um café que me parece sempre a bebida
ideal para começar o dia e ajudar a despertar os sentidos para o buliço da
estação. É como se estivesse no meu habitat natural. Numa estação dificilmente
me aborreço, num aeroporto, qualquer uma hora de espera me dana.
É
redundante estar sempre a dizer que me deixo encantar por estas estações, mas
que posso eu fazer!? Carregam a aura de outros tempos; marcam uma época; têm
impregnado nos seus alicerces o peso da história e as estórias de quem nelas se
deteve; guardam recantos de fuligem e o silvo das máquinas; abrigam os abraços,
os sorrisos e as lágrimas das despedidas e dos reencontros. Ninguém se despede
à janela de um avião, nem sequer no primeiro degrau das escadas de acesso à
porta traseira. O avião não se dá a esse luxo, a esse romantismo. E eu perco-me
em pensamentos contemplando a arquitectura, o ferro e o vidro, os recortes
neo-renascentistas e neo-clássicos, as pessoas apressadas para o trabalho, a
amalgama de gente que se apinha na plataforma à chegada de um suburbano, o som
dos trolleys arrastados pelo átrio, as
mães empurrando carrinhos de bebé, os horários à entrada de cada linha, os
relógios – sempre os relógios (o mais icónico dos elementos de uma estação), as
locomotivas vermelhas dos comboios regionais, as automotoras brancas de alta
velocidade e nariz achatado, a sombra e a luz esconsa e modesta que inunda a
gare.
Noites
mal dormidas é nisto que resultam. O balanço do comboio – a juntar ao mau tempo
que faz lá fora – embalam-me repetidamente para o sono. Faço um esforço
hercúleo por me manter acordado e contemplar a paisagem que corre do outro lado
da vidraça, ainda que só depois de Mainz – talvez mesmo só em Bingen am Rhein –
a viagem reproduza algo verdadeiramente digno de registo.
Bingen
devolve-me ao Douro e transporta-me à Escócia, como se as duas realidades
fossem possíveis de combinar. Um vale cinzento, húmido e frio, de onde brotam
vinhedos trepando encosta acima – alinhados com se tivessem acabado de ser
penteados –, pontuado de castelos que diria dessas paragens enevoadas do norte
da grande ilha britânica. Tenho a sensação de perder escala e me tornar um
pequeno boneco numa maqueta animada.
O
comboio avança margem fora, paralelo à estrada onde tenho a impressão de ver
mais ciclo turistas do que propriamente automóveis e que por sua vez segue ela
também paralela ao rio. Do lado direito, na outra margem, segue uma outra
linha. Deduzo que destinada preferencialmente ao transporte de mercadorias. Atento
nas balsas chatas e nas barcarolas de excursionistas que sobem o rio; numa
igreja de tijolo alaranjado e o seu pequeno cemitério contíguo; nas outras
todas de telhados pontiagudos; no casario de aspecto medieval; nos edifícios
dispostos e aparentados a casinhas e hotéis do Monopólio; numa construção incaracterística no meio do rio; nos
túneis, nas escarpas afiadas e nas vertentes íngremes; nos castelos de ar
sombrio em lugares inusitados e atravessados pela neblina; e na falta de luz
que tudo reflectiria nas agora turvas e acastanhadas águas do Reno.
Entre
as estações e o perfilar das vistas, tenho um vislumbre de inocência e fico a
pensar que a Alemanha tem esse condão em mim: o de me devolver à infância, mas
a uma à qual não pertenci que não apenas no meu imaginário.
Chegamos
a Koblenz. O vale alarga e afasta-nos das margens. Cruzamos afluentes. Vejo
pontes em arco. O sono persiste. Intensifica-se. Já não há rio nem encostas
verdejantes, nem tão pouco o mau tempo e a névoa de até agora. Deu a vez a um
sol tímido que convida ainda mais à sesta. Vou ceder. Tenho esperança que não e
que a paisagem melhore. Não melhora. Adormeço… Há ainda um longo caminho até
Berlim.
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