Recordo a primeira vez que visitei Varsóvia; estávamos no verão de 2005 e embarcava em Espinho com o amigo Hugo para a minha primeira grande viagem de comboio. Sonhara com o Interrail durante anos e finalmente ia tornar-se realidade – ainda que pecasse por tardio...
Pouco ou nada conhecia da Polónia, mas enquanto elaborávamos a rota para aqueles dias, apercebi-me do muito que havia para descobrir. Começaríamos por Gdansk, descíamos a Varsóvia e seguidamente a Cracóvia, de onde visitaríamos Auschwitz e as minas de sal de Wieliczka.
O plano não correu como previsto mas a Polónia revelar-se-ia uma agradável surpresa.
O plano não correu como previsto mas a Polónia revelar-se-ia uma agradável surpresa.
Entretanto já visitei o país por mais duas ocasiões e o regresso sabe sempre bem.
No verão anterior à minha última estada na capital polaca – e depois de conhecer Richard Zimler por ocasião do 'LeV - literatura em viagem' em Matosinhos – lia 'Os Anagramas de Varsóvia' e crescia em mim a vontade de vasculhar in loco, as memórias desse gueto.
A criação do Gueto de Varsóvia remonta a 1940, altura em que a ocupação nazi fez circunscrever a um espaço de apenas 2,4% do território da cidade, o equivalente a 30% da sua população. Os judeus viam-se assim, completamente segregados.
Hoje, ao caminharmos pelas estas ruas, dificilmente nos damos conta dos horrores que ensombravam a cidade por esses dias. Mas as lembranças estão lá. Não há como esquecer. Não se pode esquecer!..
Atravesso a artéria Prózna. O cinzento do céu abate-se sobre a rua como se entrássemos num filme a preto e branco. Os edifícios conservam ainda o seu aspecto intacto; o tijolo das paredes é de um rubro como só por estas paragens de leste é possível encontrar. Cada pedra parece querer contar uma história, soltar um grito. Há rostos impressos nos vãos semi-emparedados das fachadas, mas a verdade é que os pareço ver olhar-me; um olhar triste, profundo e amargurado. Cada porta, cada janela, cada varanda ou curva na grade que as ornamenta, é como uma viagem no tempo, como se me transportassem a esses dias negros…
Uma das imagens mais marcantes do imaginário do gueto é o seu muro. O elemento físico do confinamento. Procuro-o entre as novas residências que interrompem o traço contínuo, que pelas ruas da cidade marca os limites da intolerância nazi. Há algo de estranho nestes sobreviventes mudos, elementares, nestes blocos sobrepostos, camuflados em pátios entre árvores de copa verde e edifícios altos. Há velas a queimar em nichos irregulares, flores, bandeiras de Israel, cruzes de David e lajes comemorativas. Não consigo deixar de pensar no que estas paredes terão visto, nas conversas e lamentos que terão escutado, nos corpos gastos e famintos que nelas se terão apoiado…
Invade-me a consternação. Nos arredores destes restos de muro ainda preservados, fica um dos orfanatos dirigidos por Janusz Korczak – um médico pediatra de famílias abastadas, que dedicou o seu conhecimento e experiência em favor dos mais desfavorecidos. Janusz Korczak recusou sempre abandonar os seus educandos. Apesar da idade, enjeitou a própria liberdade por mais de uma vez. Ficou no gueto e marcharia com as crianças em direcção a Umschlagplatz – a estação de onde partiam os comboios com destino a Treblinka – onde acabaria por morrer…
Continuo a minha busca pelas memórias do gueto. Aqui e ali há vestígios de edifícios e fragmentos do muro. Vou em direcção à rua Chlodna. Em 1941 – e devido à sua importância enquanto eixo de comunicação – o gueto é dividido por esta artéria, e em Janeiro do ano seguinte, uma ponte em madeira é erigida conectando os dois lados. A ponte da rua Chlodna tornou-se um símbolo do holocausto. Hoje, um memorial constituído por quatro colunas ligadas aos pares por cabos que atravessam a rua, recordam através de sons e imagens nelas embutidas – as quais se vêem espreitando por pequenos orifícios –, fragmentos do quotidiano da vida no gueto.
Prossigo em direcção ao novo Museu da História dos Judeus Polacos e ao monumento que em frente celebra os Heróis da Revolta do Gueto. Daqui, um conjunto de blocos esculpidos que nem uma via-sacra, leva-nos ao local da antiga Umschlagplatz, marcando o percurso dos judeus até aos comboios que os conduziriam aos campos de extermínio nazi…
Umschlagplatz já não é mais lugar de partidas infames, mas por aqui – nesta lembrança de estacão – parece perdurar o odor a óleo queimado das travessas; o vapor e a fuligem das locomotivas; o ladrar intimidante dos pastores-alemães; o frio da neve debaixo dos pés; o terror nos olhares que espreitam de dentro dos vagões...
Varsóvia é uma sereia de muitos encantos. O bairro judaico pode não ser a mais bela das suas faces, mas é aqui – nas suas ruas, nos seus edifícios e monumentos – que vive uma das mais importantes páginas da sua história, e é nessas calçadas e paredes, que as lembranças dessa história se manifestam.
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