Voltamos ao Cairo. Não me canso. Continua tudo mais ou
menos na mesma – como outra coisa não seria de esperar. Contundo, já não há
tanques nas entradas da praça Tahrir. Resta o arame farpado – aqui e em redor
dos edifícios mais sensíveis. Também não há trânsito na praça nem metro a parar
debaixo dela.
Ao Cairo basta-lhe os seus cafés e esplanadas repletos
de jogadores de gamão e fumadores de shisha;
as ruas empoeiradas e em constante agitação; os ‘tocadores de tachos e panelas’
que fazem música nas bancas de koshari entre
pratos de grão-de-bico, arroz e lentilhas; os bares de cerveja, recônditos e laicos,
frequentados por homens incréus de testa lisa, que acompanham o ilícito liquido
com rodelas de pepino, cenoura e ramas de uma qualquer erva indecifrável aos
meus olhos; o Nilo e as velas em triângulo das felucas que nele navegam; os vendedores ambulantes de batata-doce à
entrada da ponte Qasr al-Nil e a luz parda que cobre as ruas de poeira, para me
fazer sentir reconfortado. Digo ‘basta-lhe’ não que seja pouco – ou como se não
fosse algo só dela, suficientemente identitário e incomparável. Não. Digo
‘basta-lhe’ porque – como todas as grandes cidades por que me apaixono (como
Istambul, por exemplo) – os seus encantos não moram na monumentalidade dos
edifícios ou das avenidas – como muitas
das cidades europeias – mas nestas pequenas coisas, tão susceptíveis de
desagradar à maioria das pessoas, por manifesta incapacidade de as descortinar
para lá do pavor do primeiro impacto com o caos aparente, e que me dizem
detestar o Cairo depois de lá terem passado umas míseras vinte e quatro horas,
fechados no hotel.
Seguimos para Bahariya e para os desertos Branco e
Negro. O trânsito é ainda frugal a esta hora da manhã mas serão necessárias
quase tantas horas para sair do Cairo propriamente dito, como depois para lá
chegar.
No meio da multidão que aguarda numa qualquer paragem,
não deixo de me perturbar com estas mulheres cobertas de negro, em total
anulação, permitidas apenas à sombra do que são, como espectros de si mesmas… e
o oásis para onde nos dirigimos – tal como em Siwa – é um baluarte desta
herança machista e inquisidora.
Uma vez lá – em Bahariya – teríamos a possibilidade de
conviver de perto com “a reclusão, a inacessibilidade e o mistério” destas
mulheres – como escreve Orhan Pamuk em Istambul
– Memórias de uma Cidade, quando discorre sobre as reflexões formuladas por
Gautier em Constantinople, a
propósito das mulheres de Istambul – quando convidados para um chá na casa do
filho do nosso anfitrião – um único compartimento de alcatifa azul, televisão sobre
um pequeno móvel e cama sob um cobertor vermelho –, somos chamados a conhecer a
mãe e a irmã, mas tal convite é apenas dirigido à minha namorada, pois não lhes
é a elas permitido o contacto com outros homens que não os da família…
Bahariya é um daqueles lugares onde à paragem do
autocarro acorre um maralhal de gente vendendo tours e dormidas. Faz lembrar as vezes em que chegava à Nazaré;
onde as mulheres de sete saias aguardavam à porta do autocarro oferecendo pernoitas,
com as placas onde se podia ler: QUARTOS – ROOMS – CHAMBRE – ZIMMER, mas menos
importunas.
O proprietário do lodge
onde iremos ficar aguarda a nossa chegada, poupando-nos às arrelias destes
azucrinadores, que não fazem mais do que pela vida.
Do caminho até ao lodge
– de cabanas revestidas a madeira como uma espécie de esteira – recordo as ruas
incertas ladeadas de palmeiras, filtrando a luz como um crivo sobre os campos e
os regueiros, e onde as vacas pastam indiferentes. Lembro-me de ser invadido
pela sensação de estar a entrar numa imaginário ilustrado. De ser transportado
para um lugar capaz de caber numa caixa gigante, mas onde tudo se conjuga para
reflectir aquilo que durante tanto tempo habitou o meu pensamento. Tive vontade
de voltar ali, aqueles míseros metros quadrados onde tudo era perfeito – coisa
que acabaria por fazer horas mais tarde, na lentidão dos meus passos e na caixa
aberta de uma carrinha que nos daria uma pequena boleia até ao centro da
povoação, devolvendo-me à quietude daquele lugar e a participar dele.
Apesar de tudo, Bahariya deixa muito a desejar quando
comparado com Siwa. Soubesse eu que me seria tão difícil seguir de um oásis
para o outro e teria começado por aqui e só depois Siwa. A cortesia das pessoas
não tem comparação – houve momentos inclusive em que nos sentimos completamente
relegados – e o burgo em si, a sua zona central (não o palmeiral de que há
pouco falei), não têm, nem de perto nem de longe, o encanto do seu congénere.
Ao final dessa tarde, faríamos uma corriqueira incursão
pelos arredores do lodge até às
margens de um lago, subiríamos um par de dunas – no sopé das quais jaziam
carcaças de gado – e terminaríamos a nossa volta num criador de camelos, entre as
suas crias e as crianças que se banhavam numa piscina improvisada pela água
quente que ali brotava e que servia de irrigação às verdejantes hortas que
sempre me impressionam pela forma como marcam, indeléveis, a paisagem e a
transição entre o deserto e o oásis, e onde habitualmente se descortinam as jallabiyas acocoradas dos homens que por
ali trabalham, ou as atravessam montados de lado nos burros que chibateiam
impiedosos.
É nestas nascentes que os habitantes de Bahariya – os
homens, bem se entenda – tomam os seus banhos sob o luar da noite, entre as
acácias que circundam os natatórios. Águas quentes, de cor esbranquiçada e azul
pálido, fruto certamente dos sabonetes e champôs que ali se impregnam.
Mas Bahariya é sobretudo a porta de entrada para os
desertos Branco e Negro – mais próximos do oásis de Farafra, mas que por ser
mais pequeno não consegue rivalizar com o seu congénere a norte.
Carrega-se o jipe. É preciso parar ainda na morada do
nosso condutor para a galinha que servirá de jantar. Do lado de fora, de dentro
do carro, vêem-se apenas os blocos de cimento branco e a argamassa que os une.
A porta que se abre parece dar não para um espaço interior, mas para um átrio
no qual creio vislumbrar uma qualquer árvore de tronco retorcido pendendo sobre
um telhado de zinco. No regresso, Mohammed conta-nos que tradicionalmente as
famílias de Bahariya vivem juntas, cada qual na sua casa mas partilhando um
pátio comum.
Deixamos o casario e percorremos a estrada que cruza o
deserto ao som do compact-disc com
músicas líbias. Mohammed terá pouco mais idade que eu, mas o seu bigode, a pele
curtida e certamente os afazeres paternais, conferem-lhe um ar maduro, bem mais
velho. Tenho a impressão do tempo correr tão lentamente por aqui que é incapaz
de acompanhar o envelhecer dos homens…
Deixamos Bahariya. À saída ficam as grandes dunas –
ainda assim incomparáveis às de Siwa ou sequer às de Marrocos – e o Deserto
Negro vai ganhando lugar. Uma imensidão pontuada por pequenas montanhas de cor
escura, de acção vulcânica, erguendo-se sobre a desenrugada manta de areia ocre
– subtilmente nacarada, clara, esbatida e fosca – num negro profundo como duros
hematomas do deserto, polvilhados de fragmentos rochosos, lava sólida. De
quando em vez, nesse caminho para sul, vastas hortas de Aloés e outras espécies
surgem do nada.
Paramos para almoço no minúsculo oásis de El-Hayz. As
várias nascentes tornaram desde há séculos este lugar habitado e é junto delas
que se concentram hoje importantes pesquisas arqueológicas. Um pequeno córrego no
interior do espaço onde é servida a refeição, encaminha a água proveniente de
uma nascente do lado de fora da entrada. Um espaço coberto por folhas de
palmeira, amplo e fresco. Lá fora o calor aperta. Estas nascentes, aprisionadas
entre muros que nem tanques de roupa suja, parecem miragens na imensidão do
deserto; mas parecem também – salvo as várias e devidas diferenças – um daqueles
postais de hotéis caros, com a piscina no quinquagésimo andar a cair sobre a
paisagem – sendo que neste caso, é a paisagem que cai sobre a piscina, vinda
sabe-se lá de onde.
Continuamos para sul. À saída de El-Hayz, e apesar da
nossa ajuda, uma carrinha, carregada de pasto para lá do limite das suas
capacidades, luta por desatolar da areia mas todos os esforços se revelam
infrutíferos.
Gradualmente vemos surgir o Deserto Branco. A sua cor
deve-se à ampla formação de maciços de giz, exposto e esculpidos por acção do
vento.
Deixamos o asfalto e penetramos no deserto. Devido às
diferentes formas destes maciços, os egípcios foram dando nomes a determinadas
áreas desta caiada imensidão: primeiro surgem os cogumelos – com a sua forma semelhante ao resultado da explosão de
uma bomba atómica – depois o campo de
tendas – uma vasta área de pequenos amontoados, uniformes e dispersos
ordeiramente – seguindo-se outros até àquilo que se parece com uma galinha e
uma árvore. Torna-se um desafio descortinar nos contornos destas rochas níveas,
figuras animais ou vegetais, da mesma forma que há quem o faça nas nuvens.
O lugar é magnífico e incomparável. De um alto,
podendo compreender uma extensa área desta planície, temos a sensação de
que alguém deixou derramar uma lata de tinta branca sobre o deserto,
sarapintando-o como se de uma grande obra de land art se tratasse. Mas no fundo é exactamente o contrário: a
areia do deserto foi-se apropriando deste território imaculado, cobrindo e
subindo até onde pôde, soprada pelos ventos que a movem rasteira,
aconchegando-se ondeante na aba destes cerros alvos.
Mohammed há muito que acendeu a fogueira, estendendo em seu redor um grande tapete e abrindo uma espécie de biombo como pára-vento, preso ao jipe. Faz chá enquanto prepara a galinha que embrulhará em papel de alumínio e deixará cozinhar sobre as brasas. Ouço passos nas imediações. Ocorre-me que este é certamente habitat de raposas. Questiono Mohammed que o confirma e que me diz ser capaz de as atrair com água e restos da nossa galinha. Mais tarde nessa noite, eloquentes, vê-las-íamos circundar o nosso acampamento em busca dos restos, silenciosas e prudentes, aproximando-se o suficiente para que conseguíssemos observar as suas grandes orelhas e a cauda felpuda, os olhos esbugalhados e cintilantes e o focinho esguio. Dir-se-iam capazes de domesticar ou foi apenas da minha vontade…
Adormecemos sob o céu espesso carregado de estrelas.
Estou em crer que não importa o número de vezes que durma no deserto, que irei
sempre deixar-me assoberbar pela amplitude dos espaços terrestre e interestelar,
nesta que é a mais perfeita das harmonias. E assim me invade a felicidade –
aquela sem explicações – que se me apodera da face num sorriso só meu e me
embala o sono.
A manhã desponta fria e o Deserto Branco parece então um mar de glaciares. Mohammed prepara o café para o pequeno-almoço com a cabeça envolta num lenço. Ao longe, o horizonte que se ergue sobre a espuma branca deste mar de rochas e areia, vai carregando no azul à medida que se apruma. Regressaremos a Bahariya, ao Cairo, a Hurghada e a Portugal. Pese embora todos os problemas políticos, não tendo sido uma revelação, o Egipto confirmou-se como um dos meus destinos de eleição, capaz de proporcionar as mais diversas experiências e satisfações. É casa de um povo na sua maioria afável e acolhedor, herdeiro de uma história milenar e fascinante, que será certamente capaz de tomar as rédeas do seu destino… Insha’Allah!