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18 novembro, 2014

CRÓNICAS DO NILO #9 - O DESERTO A PRETO E BRANCO



Voltamos ao Cairo. Não me canso. Continua tudo mais ou menos na mesma – como outra coisa não seria de esperar. Contundo, já não há tanques nas entradas da praça Tahrir. Resta o arame farpado – aqui e em redor dos edifícios mais sensíveis. Também não há trânsito na praça nem metro a parar debaixo dela.
Ao Cairo basta-lhe os seus cafés e esplanadas repletos de jogadores de gamão e fumadores de shisha; as ruas empoeiradas e em constante agitação; os ‘tocadores de tachos e panelas’ que fazem música nas bancas de koshari entre pratos de grão-de-bico, arroz e lentilhas; os bares de cerveja, recônditos e laicos, frequentados por homens incréus de testa lisa, que acompanham o ilícito liquido com rodelas de pepino, cenoura e ramas de uma qualquer erva indecifrável aos meus olhos; o Nilo e as velas em triângulo das felucas que nele navegam; os vendedores ambulantes de batata-doce à entrada da ponte Qasr al-Nil e a luz parda que cobre as ruas de poeira, para me fazer sentir reconfortado. Digo ‘basta-lhe’ não que seja pouco – ou como se não fosse algo só dela, suficientemente identitário e incomparável. Não. Digo ‘basta-lhe’ porque – como todas as grandes cidades por que me apaixono (como Istambul, por exemplo) – os seus encantos não moram na monumentalidade dos edifícios ou das avenidas – como muitas  das cidades europeias – mas nestas pequenas coisas, tão susceptíveis de desagradar à maioria das pessoas, por manifesta incapacidade de as descortinar para lá do pavor do primeiro impacto com o caos aparente, e que me dizem detestar o Cairo depois de lá terem passado umas míseras vinte e quatro horas, fechados no hotel.

Seguimos para Bahariya e para os desertos Branco e Negro. O trânsito é ainda frugal a esta hora da manhã mas serão necessárias quase tantas horas para sair do Cairo propriamente dito, como depois para lá chegar.
No meio da multidão que aguarda numa qualquer paragem, não deixo de me perturbar com estas mulheres cobertas de negro, em total anulação, permitidas apenas à sombra do que são, como espectros de si mesmas… e o oásis para onde nos dirigimos – tal como em Siwa – é um baluarte desta herança machista e inquisidora.
Uma vez lá – em Bahariya – teríamos a possibilidade de conviver de perto com “a reclusão, a inacessibilidade e o mistério” destas mulheres – como escreve Orhan Pamuk em Istambul – Memórias de uma Cidade, quando discorre sobre as reflexões formuladas por Gautier em Constantinople, a propósito das mulheres de Istambul – quando convidados para um chá na casa do filho do nosso anfitrião – um único compartimento de alcatifa azul, televisão sobre um pequeno móvel e cama sob um cobertor vermelho –, somos chamados a conhecer a mãe e a irmã, mas tal convite é apenas dirigido à minha namorada, pois não lhes é a elas permitido o contacto com outros homens que não os da família…

Bahariya é um daqueles lugares onde à paragem do autocarro acorre um maralhal de gente vendendo tours e dormidas. Faz lembrar as vezes em que chegava à Nazaré; onde as mulheres de sete saias aguardavam à porta do autocarro oferecendo pernoitas, com as placas onde se podia ler: QUARTOS – ROOMS – CHAMBRE – ZIMMER, mas menos importunas.
O proprietário do lodge onde iremos ficar aguarda a nossa chegada, poupando-nos às arrelias destes azucrinadores, que não fazem mais do que pela vida.
Do caminho até ao lodge – de cabanas revestidas a madeira como uma espécie de esteira – recordo as ruas incertas ladeadas de palmeiras, filtrando a luz como um crivo sobre os campos e os regueiros, e onde as vacas pastam indiferentes. Lembro-me de ser invadido pela sensação de estar a entrar numa imaginário ilustrado. De ser transportado para um lugar capaz de caber numa caixa gigante, mas onde tudo se conjuga para reflectir aquilo que durante tanto tempo habitou o meu pensamento. Tive vontade de voltar ali, aqueles míseros metros quadrados onde tudo era perfeito – coisa que acabaria por fazer horas mais tarde, na lentidão dos meus passos e na caixa aberta de uma carrinha que nos daria uma pequena boleia até ao centro da povoação, devolvendo-me à quietude daquele lugar e a participar dele.
Apesar de tudo, Bahariya deixa muito a desejar quando comparado com Siwa. Soubesse eu que me seria tão difícil seguir de um oásis para o outro e teria começado por aqui e só depois Siwa. A cortesia das pessoas não tem comparação – houve momentos inclusive em que nos sentimos completamente relegados – e o burgo em si, a sua zona central (não o palmeiral de que há pouco falei), não têm, nem de perto nem de longe, o encanto do seu congénere.
Ao final dessa tarde, faríamos uma corriqueira incursão pelos arredores do lodge até às margens de um lago, subiríamos um par de dunas – no sopé das quais jaziam carcaças de gado – e terminaríamos a nossa volta num criador de camelos, entre as suas crias e as crianças que se banhavam numa piscina improvisada pela água quente que ali brotava e que servia de irrigação às verdejantes hortas que sempre me impressionam pela forma como marcam, indeléveis, a paisagem e a transição entre o deserto e o oásis, e onde habitualmente se descortinam as jallabiyas acocoradas dos homens que por ali trabalham, ou as atravessam montados de lado nos burros que chibateiam impiedosos.
É nestas nascentes que os habitantes de Bahariya – os homens, bem se entenda – tomam os seus banhos sob o luar da noite, entre as acácias que circundam os natatórios. Águas quentes, de cor esbranquiçada e azul pálido, fruto certamente dos sabonetes e champôs que ali se impregnam.


 

Mas Bahariya é sobretudo a porta de entrada para os desertos Branco e Negro – mais próximos do oásis de Farafra, mas que por ser mais pequeno não consegue rivalizar com o seu congénere a norte.
Carrega-se o jipe. É preciso parar ainda na morada do nosso condutor para a galinha que servirá de jantar. Do lado de fora, de dentro do carro, vêem-se apenas os blocos de cimento branco e a argamassa que os une. A porta que se abre parece dar não para um espaço interior, mas para um átrio no qual creio vislumbrar uma qualquer árvore de tronco retorcido pendendo sobre um telhado de zinco. No regresso, Mohammed conta-nos que tradicionalmente as famílias de Bahariya vivem juntas, cada qual na sua casa mas partilhando um pátio comum.
Deixamos o casario e percorremos a estrada que cruza o deserto ao som do compact-disc com músicas líbias. Mohammed terá pouco mais idade que eu, mas o seu bigode, a pele curtida e certamente os afazeres paternais, conferem-lhe um ar maduro, bem mais velho. Tenho a impressão do tempo correr tão lentamente por aqui que é incapaz de acompanhar o envelhecer dos homens…
Deixamos Bahariya. À saída ficam as grandes dunas – ainda assim incomparáveis às de Siwa ou sequer às de Marrocos – e o Deserto Negro vai ganhando lugar. Uma imensidão pontuada por pequenas montanhas de cor escura, de acção vulcânica, erguendo-se sobre a desenrugada manta de areia ocre – subtilmente nacarada, clara, esbatida e fosca – num negro profundo como duros hematomas do deserto, polvilhados de fragmentos rochosos, lava sólida. De quando em vez, nesse caminho para sul, vastas hortas de Aloés e outras espécies surgem do nada.


Paramos para almoço no minúsculo oásis de El-Hayz. As várias nascentes tornaram desde há séculos este lugar habitado e é junto delas que se concentram hoje importantes pesquisas arqueológicas. Um pequeno córrego no interior do espaço onde é servida a refeição, encaminha a água proveniente de uma nascente do lado de fora da entrada. Um espaço coberto por folhas de palmeira, amplo e fresco. Lá fora o calor aperta. Estas nascentes, aprisionadas entre muros que nem tanques de roupa suja, parecem miragens na imensidão do deserto; mas parecem também – salvo as várias e devidas diferenças – um daqueles postais de hotéis caros, com a piscina no quinquagésimo andar a cair sobre a paisagem – sendo que neste caso, é a paisagem que cai sobre a piscina, vinda sabe-se lá de onde.
Continuamos para sul. À saída de El-Hayz, e apesar da nossa ajuda, uma carrinha, carregada de pasto para lá do limite das suas capacidades, luta por desatolar da areia mas todos os esforços se revelam infrutíferos.
Gradualmente vemos surgir o Deserto Branco. A sua cor deve-se à ampla formação de maciços de giz, exposto e esculpidos por acção do vento.
Deixamos o asfalto e penetramos no deserto. Devido às diferentes formas destes maciços, os egípcios foram dando nomes a determinadas áreas desta caiada imensidão: primeiro surgem os cogumelos – com a sua forma semelhante ao resultado da explosão de uma bomba atómica – depois o campo de tendas – uma vasta área de pequenos amontoados, uniformes e dispersos ordeiramente – seguindo-se outros até àquilo que se parece com uma galinha e uma árvore. Torna-se um desafio descortinar nos contornos destas rochas níveas, figuras animais ou vegetais, da mesma forma que há quem o faça nas nuvens.
O lugar é magnífico e incomparável. De um alto, podendo compreender uma extensa área desta planície, temos a sensação de que alguém deixou derramar uma lata de tinta branca sobre o deserto, sarapintando-o como se de uma grande obra de land art se tratasse. Mas no fundo é exactamente o contrário: a areia do deserto foi-se apropriando deste território imaculado, cobrindo e subindo até onde pôde, soprada pelos ventos que a movem rasteira, aconchegando-se ondeante na aba destes cerros alvos.

 

Aproxima-se o pôr-do-sol. O horizonte ganha indescritíveis tons áureos, laranjas, lilases, púrpuras e azuis cada vez mais pardacentos, que dão por sua vez lugar à noite, à lua e às estrelas que polvilham os céus. Sob a luz do luar cheio, o Deserto Branco ganha outra dimensão. É ainda assim incapaz de perder a aptidão de nos abraçar; de nos tornar seu apesar da imensidão que convida a perder-nos, sem medos, no seu horizonte; a subir a cada um dos seus amontoados de giz branco, e contemplar todos os outros esfumando-se na noite cada vez mais densa. Essa ‘luz de luar cheio’, recordo-a como se o dia não se tivesse de facto apagado, mas apenas o céu tingido de negro. De um negro que nem sequer o era bem. Como se fossemos iluminados por um enorme candeeiro para cima do qual atiraram uma camisola de lã. Essa luz era como se o deserto fosse não só iluminado de cima para baixo como de baixo para cima (o que faz sentido pela acção do reflexo do luar na rocha branca). Essa luz, gradualmente mais derramada nas horas e à medida que a lua se escondia, tinha algo de aconchegante e de abrigo.


Mohammed há muito que acendeu a fogueira, estendendo em seu redor um grande tapete e abrindo uma espécie de biombo como pára-vento, preso ao jipe. Faz chá enquanto prepara a galinha que embrulhará em papel de alumínio e deixará cozinhar sobre as brasas. Ouço passos nas imediações. Ocorre-me que este é certamente habitat de raposas. Questiono Mohammed que o confirma e que me diz ser capaz de as atrair com água e restos da nossa galinha. Mais tarde nessa noite, eloquentes, vê-las-íamos circundar o nosso acampamento em busca dos restos, silenciosas e prudentes, aproximando-se o suficiente para que conseguíssemos observar as suas grandes orelhas e a cauda felpuda, os olhos esbugalhados e cintilantes e o focinho esguio. Dir-se-iam capazes de domesticar ou foi apenas da minha vontade… 
Adormecemos sob o céu espesso carregado de estrelas. Estou em crer que não importa o número de vezes que durma no deserto, que irei sempre deixar-me assoberbar pela amplitude dos espaços terrestre e interestelar, nesta que é a mais perfeita das harmonias. E assim me invade a felicidade – aquela sem explicações – que se me apodera da face num sorriso só meu e me embala o sono.



A manhã desponta fria e o Deserto Branco parece então um mar de glaciares. Mohammed prepara o café para o pequeno-almoço com a cabeça envolta num lenço. Ao longe, o horizonte que se ergue sobre a espuma branca deste mar de rochas e areia, vai carregando no azul à medida que se apruma. Regressaremos a Bahariya, ao Cairo, a Hurghada e a Portugal. Pese embora todos os problemas políticos, não tendo sido uma revelação, o Egipto confirmou-se como um dos meus destinos de eleição, capaz de proporcionar as mais diversas experiências e satisfações. É casa de um povo na sua maioria afável e acolhedor, herdeiro de uma história milenar e fascinante, que será certamente capaz de tomar as rédeas do seu destino… Insha’Allah!

06 novembro, 2014

CRÓNICAS DO NILO #8 - OS OCULTOS ENCANTOS DE SIWA



Os apelativos postais do oásis de Siwa, não fazem jus ao que neles se vê. Há mais para lá das piscinas naturais rodeadas de palmeiras; das ruínas ocres no sopé do monte arenoso da mesma cor, que se estende até ao palmeiral, que se estende até ao lago, que se estende até um mar de areia… Há mais, mas não é evidente.


Siwa é o oásis mais remoto e distante daquilo a que chamam a Rota dos Oásis do Deserto Oeste. Fica poucos quilómetros a leste da vizinha Líbia, a mais de cinco horas de Bahariya – um outro oásis deserto adentro – e a mais de 300 quilómetros a sul de Marsa Matruh. Tem dialecto próprio e gente afável e inúmeras nascentes de água quente.
Quando o autocarro atravessa as primeiras casas, depois de centenas de quilómetros de areia, o sentimento é de uma certa desilusão. Deixara-me encantar pelas imagens maioritariamente tiradas de um ponto de vista elevado, e parecia-me agora, que o olhar a metro e setenta do solo poderia não ser assim tão aprazível. Não percebia o que me faltava. Não me parecia um oásis – pese embora nunca ter estado em nenhum e ser talvez esse precisamente o problema: o desajuste da realidade com uma ideia pré concebida.


Descemos do autocarro. Que pena ter criado tão grande expectativa… Meia dúzia de lojas e cafés numa rua, a grande mesquita, a fortaleza de Shali nas suas costas e a praça do mercado ali ao centro, de frente para as suas ruínas, repleta de mais lojas e restaurantes.
Instalo-me. A noite cai apressada. Ao que parece há um mítico restaurante mesmo no centro da praça: o Abdu. Mohammed – o recepcionista – sugere que depois do jantar, voltemos ao hotel para seguir com ele até um pequeno café que possui a sua própria piscina proveniente de uma nascente de água quente que ali brota.
O Abdu não é mais que uma esplanada coberta por uma paliçada suportada por quatro colunas de troncos de palmeira. Tem uma luz convidativa, as paredes cobertas de pequenas pedras. Está cheio. Há algo de familiar no ambiente.
Ahmed vem atender-nos. Tem os olhos pintados de negro e um olhar fatigado. Traz um turbante de cores vermelho e branco – tipicamente berbere – e uma espécie de jallabiya de inverno, listada a castanho e bege. Fala calmamente e de forma gentil. Parece já nos conhecer, de tal maneira que no final da refeição, nos convida para uma festa no dia seguinte. Estranhamos tão rápida afinidade, mas o certo é que já havíamos sido alertados para a genuína simpatia do povo de Siwa. A minha decepção inicial estava prestes a mudar…

Mohammed leva-nos ao tal café nas imediações do deserto. O jipe segue por ruas empoeiradas e de luz amarela, até se perder, para lá dos limites do povoado, em sinuosos caminhos escuros, repletos de estrelas e impossíveis de decorar.
À entrada arde uma fogueira ao redor da qual estão dispostas algumas cadeiras. Imediatamente à direita fica a piscina fumegante, onde uma mulher se banha completamente vestida e de cabelo tapado por um lenço branco, intimidando qualquer ocidental a entrar ali com os seus indecoros biquínis. Já no dia seguinte, iríamos presenciar situação idêntica na nascente de Cleópatra, quando um grupo de estudantes em férias ali chegou e algumas alunas se fizeram à água, assim mesmo vestidas sob umas três camadas de roupa, apesar dos colegas do sexo masculino o fazerem de peito nu e em banais calções de praia…
Apesar da insistência de Mohammed para que fiquemos à vontade, resolvemo-nos pela fogueira e pela companhia de um chá – servido em pequenos copos e bastante doce, depois de oxigenado diversas vezes numa vai e vem entre o copo e o bule.

Ao nascer do dia, Siwa vai lentamente revelando os seus encantos. Há qualquer coisa de acolhedor na simples sombra das palmeiras no pátio do hotel…
Alugamos bicicletas e passamos o dia percorrendo o labiríntico jogo de ruas, deambulando entre tamareiras e campos de cultivo até aos enormes lagos salgados que antecedem as dunas e o grande mar de areia, e perdendo-nos mais ainda até aí.
Um pouco por todo o lado, camufladas por entre o palmeiral a perder de vista e as ruas entaipadas por um entrelaçado de folhas de palma, escondem-se nascentes de água quente, borbulhentas e cristalinas. Há pombais que nem torres cónicas, perfuradas de forma disciplinada e decorativa, de estrutura visível como agulhas de croché espetadas num novelo de lã. Há tâmaras e azeitonas pendendo das árvores.
As ancestrais construções – como a fortaleza de Shali ou o templo de Alexandre ‘o Grande’ (que por aqui também terá passado) – parecem castelos de areia abandonados aos caprichos do tempo; ao sabor do vento que lhes vai lapidando as torres e a muralha de pequenas aberturas e aspecto áspero. Nas imediações, as mulheres vendem cestos e artesanato local.
As pessoas são afáveis e acolhedoras. Esta hospitalidade diz-se ser resultado da localização do oásis numa importante encruzilhada comercial do deserto.
Sempre habituados a receber forasteiros, o povo de Siwa parece querer fazer desse o seu elemento distintivo. Ao contrário dos outros oásis, Siwa é casa de uma maioria berbere. Aqui as mulheres trajam de um negro que as cobre por completo. Mantos bordados a cores com símbolos e entrançados onde predominam o verde, o vermelho e o amarelo.



Ao cair da noite regressamos ao Abdu. Ahmed cumprimenta-nos como se fossemos amigos de longa data. Perguntamos pela festa mas a resposta é pouco esclarecedora. Ahmed veste o sobretudo e na companhia de uma outra forasteira, diz-nos para subir ao táxi: uma motorizada com um atrelado coberto onde podem viajar talvez umas seis pessoas. Não faço ideia para onde nos dirigimos. Interrogamos a nossa nova companheira mas ao que parece sabe tão pouco quanto nós. É polaca. Diz vir cá bastantes vezes e que podemos ficar descansados que tudo correrá bem – não esperamos outra coisa! Mais tarde, nessa mesma noite, Ahmed acabará por ceder gentilmente o seu casacão à nossa companheira ao achá-la com frio. Ela dir-nos-á, que os homens de Siwa são uns verdadeiros cavalheiros…
O táxi pára à entrada de um grande hotel. Ahmed encaminha-nos enquanto cumprimenta alguns dos presentes no exterior. A uma das portas, segurando o cigarro na mão esquerda, um homem de sorriso largo roda o puxador e convida-nos a entrar. Parece-me tudo tão rápido – talvez por me ter distraído com a envolvência do lugar –, que quando a porta se abre e espreito o interior amplo com uma longa mesa baixa apenas, rodeada de comensais sentados no chão de pernas cruzadas e servindo-se da farta oferta exposta, sinto estar a entrar numa cena de filme. Aquela passagem do exterior negro da noite para a iluminada sala desprovida de qualquer decoração, apenas com a longa mesa de onde todos se servem e da qual somos convidados a fazer o mesmo, revelada assim como quem é convidado a entrar na sumptuosa sala de um castelo, iluminada de inúmeras velas, tocheiros e candelabros, vindo da penumbra dos corredores de carvalhos que levam até ele, tem algo de surreal.
Na mesa há de tudo um pouco e todos se servem com as mãos. Um pacote de toalhitas húmidas vai correndo entre os presentes de forma a delir o cheiro a carneiro que se entranha nos dedos. Há mais estrangeiros. A festa é pelo aniversário de um deles. Anna também cá está; uma italiana em pesquisas para a sua tese de pós-graduação sobre o dialecto local; o siwi.
Terminado o jantar, todos se recostam nas almofadas e nas paredes que envolvem a sala abobadada que confere ao espaço a particularidade de se conseguir escutar – como se falassem nas minhas costas – as conversas em surdina tidas no outro canto da sala – o mesmo efeito que havia experimentado em Sintra, na sala de jantar da Casa do Cipreste, aquando da minha caminhada por Portugal.
O que sobrou da comida é levado. As mesas ficam. Duas ou três garrafas de vodka circulam de forma abscôndita como quem por cá faz rodar um charro. (Há um falso moralismo muçulmano que me causa espécie ou então é só de mim.)
A música entoa pela sala; primeiro a pequena flauta, depois os jambés, o pandeiro e as palmas. Todos cantam. À nossa esquerda, de mangas arregaçadas, Ahmed – a quem sobressai o bigode assim de perfil –, vai ecoando as palmas, fazendo-as bater uma na outra de forma perfeitamente simétrica. Ocasionalmente – mais como tique do que por necessidade –, dá um jeito ao lenço que traz sobre a cabeça. Dois homens levantam-se para dançar. Descalços, movem-se pelo centro da sala segurando as jallabiyas ou prendendo-as com o lenço que retiram da cabeça e atam como um cinto. Têm os olhos postos nos pés, os quadris para trás. Mexem-se como em semicírculos, de braços abertos ou meneando a anca como se esta fosse independente aos seus corpos. Por vezes, deixam-se cair pelo chão – pernas ligeiramente abertas e flectidas, os braços em força como numa flexão – em movimentos que diria no mínimo insinuantes…
Ainda nessa noite, findada a festa no hotel, Ahmed levar-nos-ia para uma outra festa às portas do deserto, onde uma vez mais, apenas se encontram homens e mulheres turistas. Há mais álcool e outras substâncias pouco recomendadas pelo Corão. Desta vez há também um órgão. Os homens dançam entre si; por vezes em movimentos tão sensuais que se diria efeminados – como o homem da jallabiya parda, barriga proeminente, bigode farto, sorriso contagiante e a testa banhada em suor, segurando delicadamente um lenço entre os indicadores e os polegares, e fazendo-o passar sob o seu traseiro alçado, enquanto um outro, de braços abertos em seu redor e agitando a anca, o parece convidar.
O ambiente é de pura descontracção e autêntica festa. Pergunto a Anna se isto se deve a algo em especial. Responde-me que não, que é assim quase todas as noites…


Por estes dias, Siwa está repleto de estudantes em férias e algumas famílias egípcias. No dia seguinte, depois de uma tarde passada nas dunas do grande mar de areia, de presenciar o pôr-do-sol do alto de uma delas, sentindo e recordando o constante encanto que estes lugares infindáveis e vazios me despertam, jantamos na companhia de algumas destas famílias, num acampamento improvisado para os Tours do deserto. Há entre os mais novos uma genuína vontade de comunicar, repetindo em inglês as poucas palavras que sabem e prosseguindo em árabe como se esperassem verdadeiramente que os compreendêssemos. Apesar de tudo, os berberes de Siwa não parecem morrer de amores pelos seus congéneres árabes. Acham-nos malcriados e sem modos.
Ainda nesse dia, recordo a situação quase caricata – não fosse a eminência da tragédia – da criança que se afogava numa das nascentes do deserto, sob a sobra do pequeno palmeiral e o olhar distraído de todos (e não eram poucos) os que rodeavam a pequena piscina circular e nela demolhavam os pés, acabando por ser retirada por um braço – num impulso – por alguém felizmente mais esclarecido.
Recordo igualmente, que me cativou a imagem e o contraste dos condutores de jipe, depois do chá, em oração ajoelhados sobre o tapete, enquanto todos os outros se divertiam nesse mesmo micro-oásis.



Durante estes dias, procuramos uma forma de seguir viagem directamente para Baharia sem regressar ao Cairo. A menos que conseguíssemos companhia para partilhar um jipe, tal vontade iria sair-nos demasiado caro. Mas como raramente em viagem uma coisa menos boa não resulta numa realmente boa, durante as nossas inquirições pelos diversos operadores locais, acabamos por conhecer Zait.
Zait é jovem, ar descontraído e sorriso afectuoso. Dir-me-á à nossa despedida, que era como se já me conhecesse há imenso tempo. No último dia, convida-nos para um chá nas margens do grande lago salgado. Em redor da fogueira improvisada, juntar-se-ão mais três amigos debitando teorias sobre o estado da nação, entre shots de chá e grãos de amendoim. Um deles estudou antropologia e faz-nos um retrato interessantíssimo, não só do porquê da situação politica do país, mas também das diferenças entre os beduínos (a maioria egípcia) e os berberes.
O amigo de Zait explica que os berberes (predominantemente do norte do Egipto e da região do Sinai) se caracterizam por se fixarem em lugares onde haja água, ao contrário dos beduínos, de espírito mais alerta, que estão permanentemente em busca dela. Em Siwa, os berberes fixaram-se na fortaleza de Shali e ali eram capazes de viver cercados durante um ano inteiro apenas com tâmaras e água. Apesar das tentativas, os beduínos nunca foram capazes de penetrar as defesas berberes e tomar a fortaleza.
A agulha da conversa muda de direcção. Inquieta-me a actual situação politica do Egipto. Interrogando-me sobre as consequências das revoluções, sobre o caminho que o país irá seguir e sobre se alguma vez a democracia irá aqui prevalecer.
O amigo de Zait procura explicar-me:
- O Médio Oriente sempre foi dominado por classes distintas, todas cooperando entre si como salvaguarda do poder. Ao passo que em países como a Jordânia ou a Síria, são famílias que – quase como reis – dominam os destinos do país, o Egipto é uma sociedade militar – ajudando a explicar não só a popularidade de Sisi, como possivelmente até a sua necessidade – especialmente na ausência de educação e de numa sociedade verdadeiramente civil. – Explica. – Quanto à revolução (a dita Primavera Árabe), ela é sobretudo fruto das reivindicações de maior liberdade de expressão por parte da comunicação social – em especial da Al Jezeera, apesar de sediada no Qatar. No entanto, tudo parece ter sido deturpado e manipulado, tanto mais que, apesar de tudo, nunca ninguém no Egipto alguma vez pensou que Mubarak pudesse ser derrubado. – Conclui.


O sol cai sobre o lago. Zait devolve-nos ao hotel para que possamos recolher as mochilas, jantar e tomar o autocarro nocturno de volta ao Cairo. Presenteia-nos com dois porta-chaves e um abraço de quem fomos mais do que apenas ‘mais um’ a por aqui passar.
Terminado o jantar no Abdu, Ahmed não deixa que partamos sem nos presentear ele também. Diz-nos para esperar e corre à loja do outro lado da rua. Traz uma grande caixa de tâmaras em vácuo que nos oferece de imediato.
Quero por tudo acreditar que – apesar da notória e generalizada simpatia dos locais – não é sempre assim, e que de alguma forma fomos um pouco especiais. Mas se assim não for – se for sempre assim e para com todos – então tanto melhor!
É então ao despedir-me de Siwa, que compreendo por que não me apercebera de imediato dos seus encantos; porque a maior das suas belezas, não é coisa de se ver… é antes sim de sentir.