29 maio, 2012

Sentimentos Ambivalentes


Johan é um ‘abridor de poços de minas’ – se é que se pode dizer assim – e todos os meses, por duas vezes, faz a viagem entre Svakopmund, onde agora reside – Johan é sul africano – e a mina onde a sua empresa está a operar, nos arredores de Joanesburgo. São cerca de 2000 quilómetros que faz de uma assentada, sem qualquer paragem pelo meio. Quando me encontra à saída de Keetmanshoop de polegar em riste, já está na estrada à mais de seis horas e pelo menos mais 12 serão necessárias até chegar a Welkom, onde o seu filho Pieter reside e onde também passarei a noite a convite de Johan, assegurando-me que na manhã seguinte, depois da reunião madrugadora que tem na mina, me deixará entregue à minha família em Joanesburgo.
Quando parou, não tive imediata consciência para onde se dirigia, percebendo no entanto que me poderia deixar em Karasburg ou com um pouco de sorte em Upington, já no outro lado da fronteira, mas uma olhada pelo mapa fez-me perceber que se dirigia quase na integra até Joanesburgo e que a pouca sorte que eu procurava, era afinal a sorte toda reunida. Depois de horas de frustração sem conseguir qualquer boleia, acabava de conseguir uma de mais de 1000 quilómetros que me levaria directamente a Joanesburgo.

Johan pára para abastecer a carrinha junto a um cruzamento e os nossos viandantes alemães deixam a caixa traseira para prosseguir caminho até ao Fish River Canyon, debaixo de um calor infernal. Os ares quentes do Deserto do Kalahari que se estende desde o Botswana até ao encontro das fronteiras entre os três países são abrasadores. Um manto de areias flamejantes sopradas por ventos que viajam desde o Canal de Moçambique, arrastadas por quilómetros como línguas de fogo até à África do Sul.
Johan é um excelente conversador e nem por um momento durante aquelas horas intermináveis de viagem, se interrompeu o diálogo. Johan ia-me explicando cada detalhe de uma paisagem que conhece pela palma da mão, onde ele e a família já tiveram propriedades e onde algumas são de tal maneira grandes que são necessários vários dias para as percorrer na totalidade.
No entusiasmo da conversa, o acelerador do carro parece levar pouca margem entre o pedal e o fundo, e não tarda muito a que um radar de velocidade nos faça parar, inviabilizando qualquer tentativa de persuasão sobre os escrupulosos policias… Johan é genuinamente boa pessoa, mas igualmente herdeiro de um passado obscuro de uma mentalidade aviltada onde o ‘branco’ é um ser superior, e não deixa escapar o seu desprezo por estes policias que pior do que o multarem, são negros…

Prosseguimos viagem.
Johan oferece-me o lanche que a sua esposa preparou para ele enquanto me conta da cheias que ocasionalmente ocorrem nesta zona, com a água a atingir alturas tal, que chega a cobrir na totalidade as vedações das propriedades, deixando um rasto visível de destruição, como aconteceu recentemente, com parte da linha férrea que segue a par da estrada a ficar completamente arruinada.
Apesar de toda a rigidez do clima, este parece ser o lugar ideal para um tipo específico de ovelhas de cabeça preta, que Johan me explica ser uma defesa contra o sol impiedoso. Também tecelões ‘escultores’ parecem gostar deste clima, e os seus ninhos que crescem de cima para baixo em forma de cogumelo e onde habitam centenas de indivíduos, pontuam os postes de comunicação ao longo de toda a estrada.

Entre estas fronteiras tiradas a régua e esquadro, há uma interminável terra de ninguém. Nestes quase 20 quilómetros sou invadido por uma sensação estranha, um sorriso incontido, um pronuncio evidente de um fim cada vez mais eminente. Os últimos seis meses desfilam-se-me em retrospectiva. A última fronteira chega por fim. O último carimbo. Cheguei. Consegui…
Sentimentos ambivalentes consomem-me o espírito; o fim, o regresso, numa mistura de alegria e pena…

Mas a viagem prossegue.
Nas margens do rio Orange, fileiras infindáveis de videiras riscam as encostas ao largo de Upington, que Johan se desvia para me mostrar, neste que é um dos maiores e mais importantes rios da África do Sul e que pouco depois daqui, faz fronteira natural com a Namíbia.
 Alguns quilómetros depois alguém tenta trocar um pneu na berma da estrada. Johan passa mas volta atrás assim que percebe que o homem que sentado na estrada o tenta fazer, não tem uma perna.
Rapidamente trocamos o pneu e seguimos viagem. Um céu que se carrega de púrpura mancha o azul pálido da tarde que se esfuma ao ritmo do relato de mortes de amigos de Johan na estrada. O céu fecha-se sobre relâmpagos silenciosos que reclamam tempestades distantes e a noite toma o seu lugar.
Às portas de Welkom, a estrada é um desfiladeiro entre paredes de milho. Plantações infindáveis estendem-se por quilómetros como um celeiro por desfolhar que alimenta todo o país. Apesar da escuridão, Johan vai parando aqui e ali para me mostrar estas marcas da paisagem, como faz ao passarmos por uma das maiores barragens do país, que a noite não deixa ver.

O dia desperta ainda noite e dirigimo-nos para a mina onde Johan tem uma reunião às seis da manhã. Toda a zona envolvente a Joanesburgo é um gigantesco filão de minério; com ouro, ferro, carvão e outros, a serem extraídos às entranhas da terra, tornando-se o berço de Joanesburgo e de cidades vizinhas.
Depois da reunião, Johan deixa-me por fim numa zona comercial onde a minha família me virá buscar. A caminho de casa, a entrada no núcleo da cidade é pontuado por montes que não são mais que o resultado da actividade mineira e que o tempo e a vegetação vão lentamente reclamando para si. Recentemente no entanto, um arrojado plano de reconversão paisagística, tem procurado voltar a encher o labirinto de túneis das minas já encerradas, com esse mesmo desperdício que repousa como montanhas artificiais no exterior das mesmas.

Joanesburgo é à primeira vista, uma cidade urbanisticamente interessante. De todo o tempo que lá passei, pareceu-me sempre estranhamente agradável, apesar dos seus muros altos, com vedações eléctricas e arame farpado, como uma coroa de espinhos que amarga e persistentemente, recorda o medo com que se vive num país com uma elevadíssima taxa de criminalidade. No entanto, a cidade é uma das mais verdes do mundo, estendendo-se por uma área superior a 1500Km2 e toda essa mancha arborizada é facilmente perceptível do alto das suas colinas.
A história de Joanesburgo confunde-se com a história da corrida ao ouro, com o Apartheid e com a história da nossa diáspora.
Tendo sido fundada em 1886, atingiu uma população de 100 mil habitantes em apenas 14 anos, com o boato da existência de ouro na região a atrair ‘garimpeiros’ de todo o mundo, o que de certa forma ajuda a explicar a multiculturalidade deste país e dá outro significado à ideia de ‘nação arco-íris’.
Há uma grande comunidade portuguesa a viver em Joanesburgo – muitos vindos de Moçambique aquando da independência do país – e que segundo se conta, deram um contributo importante para a construção da cidade. Também durante o período do Apartheid, se consta que eram eles quem mais ajudava a comunidade negra.
Foi logo em 1910 que o regime do Apartheid foi implementado, segregando brancos, negros e indianos, numa catalogação estúpida em que o único critério era a cor da pele… a estupidez era tal que compreendiam a existência de ‘camaleões’, ou seja, pessoas que mudavam de cor de pele e que por isso mesmo podiam transitar de categoria…
Apesar do fim do regime em 1990, a secreção racial é ainda possível de se sentir nas ruas, se não de forma física, sem dúvida de forma económica e social.

Durante aqueles dias, estive na eminência de visitar Madiba (Nélson Mandela). A simples possibilidade de isso poder acontecer era motivo suficiente para me preencher o espírito. Mandela é uma figura incontornável da história da África do Sul e da luta pela igualdade racial. Um homem inspirador! Infelizmente, o seu estado de saúde já não permite grandes contactos e mesmo o simples gesto de assinar um livro é tarefa já difícil. A sua esposa – Graça Machel – fez o favor por ele, e todo o interesse demonstrado no meu projecto e a disponibilidade – mesmo não se tendo concretizado – para me receber, foram uma recompensa inesperada.

O Shosholoza Meyl – o comboio que liga Joanesburgo à Cidade do Cabo – está cheio para meses… De alma cheia, compro novamente bilhete na companhia de autocarros de um emigrante português e faço-me à estrada.
A África do Sul é um país mágico. Um país de cor, de paisagens deslumbrantes, de prós e contras, mas que lentamente vai construindo o seu caminho, assente na igualdade e na tolerância.
Um país para voltar!

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