23 outubro, 2012

Pela Linha do Sabor


Não foi fácil deixar Miranda do Douro!
Naquela manhã de Domingo, tínhamos resolvido – depois de muita indecisão - fazer-nos definitivamente ao caminho. Há duas noites que estávamos a dormir no quartel dos bombeiros e não nos parecia bem ficar por mais tempo. Ainda tomávamos o pequeno-almoço no respectivo bar, quando o Sr. Arlindo – que amavelmente se disponibilizou desde a primeira hora para nos hospedar e para o que fosse necessário – nos introduz a três senhoras que conferenciavam sobre as agruras dos tempos.
O Sr. Arlindo explicou quem eramos e nesse mesmo instante a Dona Luísa convida-nos para almoçar em sua casa.
- O meu marido não se vai importar!
A Dona Luísa e o Sr. Carlos foram de uma simpatia incansável! O almoço estava divinal! Um verdadeiro banquete dominical; alheira, bacalhau, bola doce, castanhas, medronho, ginja… e muita e boa conversa! E para terminar o dia, levam-nos ainda ao miradouro de São João das Arribas onde é possível uma vista assombrosa sobre o Douro. Uma ‘vala’ descomunal que nos foi acompanhando desde Paradela, que se depreendia para lá das sombras de um sol que iluminava Espanha.
De entre muitas das nossas conversas, prendeu-me a história do santuário de Nossa Senhora do Picão. Neste lugar de peregrinação e culto popular – que se situava na rota da estrada romana, que outrora era utilizada pelos almocreves para ligar Lisboa a Madrid – terá Nossa Senhora aparecido a uma menina, mas a igreja nunca reconheceu qualquer milagre;
- A zona de Miranda do Douro não é ideal para ter um santuário. Não tem boa localização e não convinha que rivalizasse com Fátima. – Diziam-me. Hoje o lugar não passa de ruinas…

Já não foi possível sair no Domingo.
A linha do Sabor só começa na freguesia de Duas Igrejas, ainda a uns nove quilómetros de Miranda, e no sábado já havia tentando fazer esse percurso. Quando me preparava para sair, ainda bem no centro de Miranda, perguntam-me qual a estrada para Mogadouro. Indico a direcção dizendo que sigo no mesmo sentido;
- Então suba! – Diz-me o Sr. Jaime.
O Sr. Jaime é um homem de negócios. Com 73 anos diz que morre se não os fizer. Durante o caminho confessa-me ter nascido em Goa;
- ‘Quem não viu Lisboa não viu coisa boa, mas quem viu Goa não precisa ver Lisboa’ – conta. Viveu em Goa até esta deixar de ser Portuguesa. Mudou-se para a Suíça e actualmente vive em Espanha, mas conhece bem Portugal. Fala sete línguas e revela-se de uma enorme cultura.
Perdemos a tarde por Duas Igrejas em conversas e visitas ao seu largo de casas palacianas e degradadas. E ele mesmo devolve-me a Miranda com a promessa de contactos futuros;
- Quem sabe não lhe arranjo um trabalho para restaurar uma daquelas casas!?. – Atira abrindo o vidro do carro antes de se despedir.

Deixamos finalmente Miranda do Douro com a esperança de conseguir chegar a Mogadouro num único dia.
O Inicio do percurso é feito cruzando vedações de arrame farpado, colocado por proprietários dos terrenos contíguos à antiga linha, já consumida pela vegetação. Uma imensidão de campos aparados, de um doirado pálido, pontuado por oliveiras e castanheiros frondosos, de tronco tão espesso que me lembram embondeiros de África.
Fico a imaginar como terá sido percorrer este planalto de comboio – especialmente vindo do Pocinho – encontrando esta paisagem que se estende até aos montes de Vimioso e as arribas do Douro, nesta terra de forte produção agrícola.


A linha do Sabor foi pensada desde 1877 – dez anos antes da linha do Douro chegar ao Pocinho – com o objectivo de servir o planalto mirandês, necessitado de vias de comunicação capazes de fazer escoar os produtos agrícolas e o minério de ferro proveniente de Moncorvo.
No entanto, a linha do Sabor foi a última de toda a rede a ser aberta e a primeira a ser encerrada. Só em 1938 a linha chegou a Duas Igrejas – nunca se cumprindo o projecto de a levar até Vimioso ou Zamora – e 50 anos depois todos os serviços ferroviários foram encerrados.
Era uma linha singular em toda a rede; A urografia da região obrigava a que o percurso seguisse muitas vezes longe das povoações (Freixo de Espada à Cinta dista 15 quilómetros da ‘sua’ estação), e o traçado entre o Pocinho e Moncorvo, a um esforço enorme para vencer o declive. A vida de um ferroviário era árdua por estes lados. O frio do inverno e o calor intenso do verão não davam tréguas. Diz-se por aí, que nesses meses de canícula, o maquinista e o fogueiro levavam cada um, cinco litros de vinho que não duravam até Moncorvo, sem que nenhum deles ficasse embriagado, tal o esforço a que este primeiro troço de linha obrigava.
Nesses tempos do vapor, as subidas eram tao difíceis que o comboio seguia a uma velocidade que permitia aos passageiros saltar da carruagem da frente para apanhar laranjas e voltar a entrar na última, sem grandes correrias…

Por todo o caminho – nesta várzea soprada pelo vento – sinais em pedra de passagens-de-nível, perpetuam-se como uma memória longínqua, mesmo que já não se perceba muito bem onde passa a linha ou de onde vinha o caminho que a atravessava. Apenas canais se distinguem, reclamados ao granito à força de braços e que rompem a paisagem numa recta infindável.
Por aqui, quase 25 anos depois, a grande maioria das estações está num estado de degradação lastimosa ou veem-se consumidas pelo silvado que as cobre quase por completo.
A estação do Mogadouro enche-me particularmente de tristeza. Um edifício elegante, inconfundível, com colunas em pedra sustendo o alpendre, e de edifícios adjacentes que fazem perceber a dimensão e estatuto daquela paragem… tudo em ruina…
Diga-se no entanto em abono da verdade, que nem todas estão neste estado; a estação de Lagoaça está recuperada e encontra-se a funcionar como café. Fica num alto e de muito longe se avistava esta estação, como nos contam em Fornos, os idosos sentados à porta da Associação Cultural e Desportiva da terra.

No final da tarde desse dia, depois de descermos a Freixo de Espada à Cinta, encontro nas tesouras do Sr. Ernesto, a velha barbearia que há muito procurava para cortar o cabelo. Apesar de todas as insígnias azuis e brancas, a cadeira de ferro – ‘comprada no porto por 60 contos já lá vão uns 30 anos’ – o pincel e um sem número de apetrechos que já não se usam, fazem daquele espaço um encontro com o passado.

Terminamos o percurso pela linha em Moncorvo, onde o Victor – o nosso primeiro couchsurfer desta viagem – nos recebe em sua casa.
O Victor, além de toda ajuda que nos dispensou, apesentou-nos a um montão de amigos que tudo fizeram para que a nossa estadia fosse a mais aprazível. Contactaram outros amigos para saber de eventuais possibilidades de emprego e convidaram-nos para falar do projecto na escola secundária.
Além disso, providenciaram visitas aos museus do ferro e do vinho. Especialmente neste último a experiência foi fantástica; ficamos a saber como distinguir na paisagem do Douro cada época de plantação, quanto espaço precisa cada videira para crescer, porque se utilizam rosas no início de cada linha de vinha ou se plantam oliveiras entre talhões.
Ficamos a saber que até 1850, eram trabalhadores galegos que construíam – em muros de pedra – os socalcos da vinha, e daí se dizer; ‘trabalhar como um galego’. Que a partir de 1980 se passou a plantar na vertical, e que no Douro é necessário um espaço de 1,8 metros entre vinhas para passagem do burro ou cavalo que apoia nas vindimas – ao contrário do resto do país onde se utilizam vacas e daí a distancia passar para 2,4 metros. Que cada videira tem três ou cinco hastes, e que necessita de um metro em cada direcção para poder crescer. Que se plantam oliveiras para servirem de pára-vento, e que as rosas no início de cada fileira servem como alerta de infecção nas vinhas. Que é apenas permitida a rega nos dois primeiros anos, e que o tão famoso ‘mata-bicho’ era composto por duas mãos cheias de frutos secos e o equivalente a duas colheres de aguardente…

Descemos ao Pocinho com estas encostas de vinha penteadas, sob um sol a pique que nos deixa perseguidos pela nossa própria sombra. O olhar perde-se nas águas do Douro sustidas pela barragem. Pombais – agora completamente circulares – e mais vinha para onde quer que se olhe… 

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