Não
foi fácil deixar Miranda do Douro!
Naquela
manhã de Domingo, tínhamos resolvido – depois de muita indecisão - fazer-nos
definitivamente ao caminho. Há duas noites que estávamos a dormir no quartel
dos bombeiros e não nos parecia bem ficar por mais tempo. Ainda tomávamos o
pequeno-almoço no respectivo bar, quando o Sr. Arlindo – que amavelmente se
disponibilizou desde a primeira hora para nos hospedar e para o que fosse
necessário – nos introduz a três senhoras que conferenciavam sobre as agruras
dos tempos.
O
Sr. Arlindo explicou quem eramos e nesse mesmo instante a Dona Luísa
convida-nos para almoçar em sua casa.
- O
meu marido não se vai importar!
A
Dona Luísa e o Sr. Carlos foram de uma simpatia incansável! O almoço estava
divinal! Um verdadeiro banquete dominical; alheira, bacalhau, bola doce,
castanhas, medronho, ginja… e muita e boa conversa! E para terminar o dia,
levam-nos ainda ao miradouro de São João das Arribas onde é possível uma vista
assombrosa sobre o Douro. Uma ‘vala’ descomunal que nos foi acompanhando desde
Paradela, que se depreendia para lá das sombras de um sol que iluminava
Espanha.
De
entre muitas das nossas conversas, prendeu-me a história do santuário de Nossa
Senhora do Picão. Neste lugar de peregrinação e culto popular – que se situava
na rota da estrada romana, que outrora era utilizada pelos almocreves para
ligar Lisboa a Madrid – terá Nossa Senhora aparecido a uma menina, mas a igreja
nunca reconheceu qualquer milagre;
- A
zona de Miranda do Douro não é ideal para ter um santuário. Não tem boa
localização e não convinha que rivalizasse com Fátima. – Diziam-me. Hoje o
lugar não passa de ruinas…
Já
não foi possível sair no Domingo.
A
linha do Sabor só começa na freguesia de Duas Igrejas, ainda a uns nove
quilómetros de Miranda, e no sábado já havia tentando fazer esse percurso.
Quando me preparava para sair, ainda bem no centro de Miranda, perguntam-me
qual a estrada para Mogadouro. Indico a direcção dizendo que sigo no mesmo
sentido;
-
Então suba! – Diz-me o Sr. Jaime.
O
Sr. Jaime é um homem de negócios. Com 73 anos diz que morre se não os fizer.
Durante o caminho confessa-me ter nascido em Goa;
-
‘Quem não viu Lisboa não viu coisa boa, mas quem viu Goa não precisa ver
Lisboa’ – conta. Viveu em Goa até esta deixar de ser Portuguesa. Mudou-se para
a Suíça e actualmente vive em Espanha, mas conhece bem Portugal. Fala sete
línguas e revela-se de uma enorme cultura.
Perdemos
a tarde por Duas Igrejas em conversas e visitas ao seu largo de casas palacianas
e degradadas. E ele mesmo devolve-me a Miranda com a promessa de contactos
futuros;
-
Quem sabe não lhe arranjo um trabalho para restaurar uma daquelas casas!?. –
Atira abrindo o vidro do carro antes de se despedir.
Deixamos
finalmente Miranda do Douro com a esperança de conseguir chegar a Mogadouro num
único dia.
O
Inicio do percurso é feito cruzando vedações de arrame farpado, colocado por
proprietários dos terrenos contíguos à antiga linha, já consumida pela
vegetação. Uma imensidão de campos aparados, de um doirado pálido, pontuado por
oliveiras e castanheiros frondosos, de tronco tão espesso que me lembram
embondeiros de África.
Fico
a imaginar como terá sido percorrer este planalto de comboio – especialmente
vindo do Pocinho – encontrando esta paisagem que se estende até aos montes de
Vimioso e as arribas do Douro, nesta terra de forte produção agrícola.
A
linha do Sabor foi pensada desde 1877 – dez anos antes da linha do Douro chegar
ao Pocinho – com o objectivo de servir o planalto mirandês, necessitado de vias
de comunicação capazes de fazer escoar os produtos agrícolas e o minério de
ferro proveniente de Moncorvo.
No
entanto, a linha do Sabor foi a última de toda a rede a ser aberta e a primeira
a ser encerrada. Só em 1938 a linha chegou a Duas Igrejas – nunca se cumprindo
o projecto de a levar até Vimioso ou Zamora – e 50 anos depois todos os
serviços ferroviários foram encerrados.
Era
uma linha singular em toda a rede; A urografia da região obrigava a que o
percurso seguisse muitas vezes longe das povoações (Freixo de Espada à Cinta
dista 15 quilómetros da ‘sua’ estação), e o traçado entre o Pocinho e Moncorvo,
a um esforço enorme para vencer o declive. A vida de um ferroviário era árdua
por estes lados. O frio do inverno e o calor intenso do verão não davam
tréguas. Diz-se por aí, que nesses meses de canícula, o maquinista e o fogueiro
levavam cada um, cinco litros de vinho que não duravam até Moncorvo, sem que
nenhum deles ficasse embriagado, tal o esforço a que este primeiro troço de linha
obrigava.
Nesses
tempos do vapor, as subidas eram tao difíceis que o comboio seguia a uma
velocidade que permitia aos passageiros saltar da carruagem da frente para
apanhar laranjas e voltar a entrar na última, sem grandes correrias…
Por
todo o caminho – nesta várzea soprada pelo vento – sinais em pedra de
passagens-de-nível, perpetuam-se como uma memória longínqua, mesmo que já não
se perceba muito bem onde passa a linha ou de onde vinha o caminho que a
atravessava. Apenas canais se distinguem, reclamados ao granito à força de
braços e que rompem a paisagem numa recta infindável.
Por
aqui, quase 25 anos depois, a grande maioria das estações está num estado de
degradação lastimosa ou veem-se consumidas pelo silvado que as cobre quase por
completo.
A
estação do Mogadouro enche-me particularmente de tristeza. Um edifício
elegante, inconfundível, com colunas em pedra sustendo o alpendre, e de
edifícios adjacentes que fazem perceber a dimensão e estatuto daquela paragem…
tudo em ruina…
Diga-se
no entanto em abono da verdade, que nem todas estão neste estado; a estação de
Lagoaça está recuperada e encontra-se a funcionar como café. Fica num alto e de
muito longe se avistava esta estação, como nos contam em Fornos, os idosos
sentados à porta da Associação Cultural e Desportiva da terra.
No
final da tarde desse dia, depois de descermos a Freixo de Espada à Cinta,
encontro nas tesouras do Sr. Ernesto, a velha barbearia que há muito procurava
para cortar o cabelo. Apesar de todas as insígnias azuis e brancas, a cadeira
de ferro – ‘comprada no porto por 60 contos já lá vão uns 30 anos’ – o pincel e
um sem número de apetrechos que já não se usam, fazem daquele espaço um
encontro com o passado.
Terminamos
o percurso pela linha em Moncorvo, onde o Victor – o nosso primeiro couchsurfer desta viagem – nos recebe em
sua casa.
O
Victor, além de toda ajuda que nos dispensou, apesentou-nos a um montão de
amigos que tudo fizeram para que a nossa estadia fosse a mais aprazível.
Contactaram outros amigos para saber de eventuais possibilidades de emprego e
convidaram-nos para falar do projecto na escola secundária.
Além
disso, providenciaram visitas aos museus do ferro e do vinho. Especialmente
neste último a experiência foi fantástica; ficamos a saber como distinguir na
paisagem do Douro cada época de plantação, quanto espaço precisa cada videira
para crescer, porque se utilizam rosas no início de cada linha de vinha ou se
plantam oliveiras entre talhões.
Ficamos
a saber que até 1850, eram trabalhadores galegos que construíam – em muros de
pedra – os socalcos da vinha, e daí se dizer; ‘trabalhar como um galego’. Que a
partir de 1980 se passou a plantar na vertical, e que no Douro é necessário um
espaço de 1,8 metros entre vinhas para passagem do burro ou cavalo que apoia
nas vindimas – ao contrário do resto do país onde se utilizam vacas e daí a
distancia passar para 2,4 metros. Que cada videira tem três ou cinco hastes, e
que necessita de um metro em cada direcção para poder crescer. Que se plantam
oliveiras para servirem de pára-vento, e que as rosas no início de cada fileira
servem como alerta de infecção nas vinhas. Que é apenas permitida a rega nos dois
primeiros anos, e que o tão famoso ‘mata-bicho’ era composto por duas mãos cheias
de frutos secos e o equivalente a duas colheres de aguardente…
Descemos
ao Pocinho com estas encostas de vinha penteadas, sob um sol a pique que nos
deixa perseguidos pela nossa própria sombra. O olhar perde-se nas águas do Douro
sustidas pela barragem. Pombais – agora completamente circulares – e mais vinha
para onde quer que se olhe…
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