A
saída de Penela assinala uma espécie de viragem nesta marcha.
O
caminho torna-se num tapete rolante onde já não há aldeias, nem serras, nem
matos de pinheiros ou eucaliptos… já quase não há fruta que não laranjas… Tudo
passou a ser uma sucessão de ruas amuralhadas por um casario desinteressante,
pontuado pelo silêncio das salas de aula do ensino primário ao estilo ‘Estado
Novo’. Já não se distinguem sequer as povoações; o fim de uma é o início da
outra…
Escasseiam
os ‘bom dia’ e os ‘boa tarde’ à nossa passagem. Escasseia a paisagem que nos
toma de assombro e nos conquista e surpreende. Sobra o movimento inconsciente e
apressado do trânsito nas vias rápidas, desta gente que vive sem espaço para a
contemplação.
A partir
de Ansião, o convite para uma apresentação em Proença-a-Nova leva-me a um
desvio na rota. Seguirei à boleia, mas neste país isso parece uma tarefa
medonha.
Dou-me
conta que a nossa noção de distância é muito reduzida e que os nossos
movimentos pendulares são muito curtos. Em Portugal é necessário pegar no carro
para fazer quaisquer 15 quilómetros… para fazer os 60 entre Ansião e Proença,
precisei de tantas boleias como para cumprir os 500 entre Narvik e Alta, na
Noruega… E como se não bastasse – mesmo apesar de todas as experiências fantásticas
por que passamos – este parece-me cada vez mais um país desconfiado. Triste.
Introvertido. Ensimesmado e desperançado, onde dar boleia é um perigo, ‘como
contam as estórias dos telejornais’…
Vou
esticando os meus dias por Proença.
O
descanso, os novos amigos e uma apresentação com casa cheia fazem valer a
viagem. O encontro e a partilha. Que tanto me impelem a partir, como me enchem
de alegria cada regresso.
Das paredes
do Terra Cacau Galeia onde faço a apresentação, gravo palavras de sábios como
Amyr Klink;
“Um Homem precisa de viajar por sua conta, não
por meio de histórias, imagens, livros ou tv. Precisa viajar por si, com seus
olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores
e dar-lhes valor.
Um Homem precisa de viajar para lugares
que não conhece, para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o
imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser, que nos faz professores e
doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos e simplesmente ir ver.”
ou mais
significativas ainda as de Antoine de Saint-Exupéry;
“Cada um que passa na nossa vida, passa
sozinho, pois cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra. Cada um que
passa em nossa vida, passa sozinho, mas não vai só nem nos deixa sós. Leva um
pouco de nós mesmos, deixa um pouco de si mesmo.”
Volto
à estrada.
Não
me sinto um peregrino, mas é com emoção que entro em Fátima.
Há uma
áurea especial que envolve estas ruas.
Já à
saída de Ourém, subindo os últimos quilómetros antes de aqui chegar, o vento
sopra-me no rosto e invade-me um sentimento estranho de liberdade e felicidade.
A respiração torna-se ofegante. Olho as minhas mãos abertas e vazias… a satisfação
do caminho… Tenho a sensação de me desprender do corpo e vê-lo caminhar a meu
lado…
“Uma paisagem conquista-se com as
solas dos sapatos, não com as rodas de um automóvel”.
Releio William Faulkner, dando-me conta da
maior percepção do território; da sua urografia e características, que esta
caminhada me tem permitido. Das suas nuances e contrastes. Da sua toponímia e
glossários locais. Dos seus sofrimentos e angústias…
Depois
de alguma chuva, o verão de São Martinho parece ter chegado a esta paisagem que
se molda no branco calcário da Serra d’Aire e Candeeiros.
Uma
serra consumpta, esventrada pelos caprichos dos exploradores de rocha
ornamental… Uma serra que se alonga, fazendo lembrar uma onda gigante da Praia
do Norte.
Desço
a Porto de Mós, passo Alcobaça e por fim chego à Benedita.
O
Eliseu e o António haviam-nos convidado para uma série de apresentações, com o
intuito de falarmos não de viagens, mas da necessidade de partir; de fazer
algo; de ir em busca do acaso e dos seus frutos.
Somos
recebidos quase que com honras protocolares; conferência no externato às 12,
entrevista para a rádio às 10, palestra no instituto de formação profissional à
tarde, jantar com as mais altas individualidades da sociedade civil da Benedita
às 20, enfim… dias verdadeiramente em cheio!
De entre
muitas das nossas conversas, deu-se o acaso do António ser amigo do faroleiro
do Cabo de Santa Maria em Faro – onde vamos terminar a viagem – e que talvez
nos conseguisse proporcionar a experiência de lá pernoitar. O Eliseu, por seu
lado, diz sempre ter tido vontade de fazer algo parecido – mas pela linha de
fronteira – e a conversa leva-nos quase a um projecto conjunto…
Mas a
nossa visita tinha reservada uma outra surpresa; quando nos falaram a primeira
vez, não faziam sequer ideia que conhecíamos a Benedita. Daí que o espanto
tenha sido geral quando lhes perguntamos pelo Jacob – um amigo que já não via
desde os meus tempos de miúdo, quando ainda o meu pai por ali trabalhava;
-
Mas vocês conhecem o Jacob?!. É meu vizinho! – Respondeu-nos o Eliseu
surpreendido.
Revejo
o Jacob mais de 20 anos depois!.. Perdeu o seu característico bigode à Dáli mas
mantem toda a sua boa disposição e simpatia. Na Benedita não há quem não o conheça
e respeite, e a sua vida confunde-se com o balcão atrás do qual sempre trabalhou.
Na manhã
de Domingo – antes de voltarmos à estrada – faz questão de nos preparar um
verdadeiro pequeno-almoço com pernil na brasa, febras, linguiças e vinho tinto,
antes mesmo do abraço de despedida...
A viagem
aproxima-se da costa. Do alto da Ribafria avistam-se as Berlengas no horizonte
depois do almoço em família com o Eliseu.
Uma
vez mais, a ida à Benedita provou a relevância de uma viagem destas. Acrescenta-lhe
valor, sentido e um imenso agradecimento…
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