26 novembro, 2012

Acaso...


A saída de Penela assinala uma espécie de viragem nesta marcha.
O caminho torna-se num tapete rolante onde já não há aldeias, nem serras, nem matos de pinheiros ou eucaliptos… já quase não há fruta que não laranjas… Tudo passou a ser uma sucessão de ruas amuralhadas por um casario desinteressante, pontuado pelo silêncio das salas de aula do ensino primário ao estilo ‘Estado Novo’. Já não se distinguem sequer as povoações; o fim de uma é o início da outra…
Escasseiam os ‘bom dia’ e os ‘boa tarde’ à nossa passagem. Escasseia a paisagem que nos toma de assombro e nos conquista e surpreende. Sobra o movimento inconsciente e apressado do trânsito nas vias rápidas, desta gente que vive sem espaço para a contemplação.

A partir de Ansião, o convite para uma apresentação em Proença-a-Nova leva-me a um desvio na rota. Seguirei à boleia, mas neste país isso parece uma tarefa medonha.
Dou-me conta que a nossa noção de distância é muito reduzida e que os nossos movimentos pendulares são muito curtos. Em Portugal é necessário pegar no carro para fazer quaisquer 15 quilómetros… para fazer os 60 entre Ansião e Proença, precisei de tantas boleias como para cumprir os 500 entre Narvik e Alta, na Noruega… E como se não bastasse – mesmo apesar de todas as experiências fantásticas por que passamos – este parece-me cada vez mais um país desconfiado. Triste. Introvertido. Ensimesmado e desperançado, onde dar boleia é um perigo, ‘como contam as estórias dos telejornais’…

Vou esticando os meus dias por Proença.
O descanso, os novos amigos e uma apresentação com casa cheia fazem valer a viagem. O encontro e a partilha. Que tanto me impelem a partir, como me enchem de alegria cada regresso.
Das paredes do Terra Cacau Galeia onde faço a apresentação, gravo palavras de sábios como Amyr Klink;
Um Homem precisa de viajar por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou tv. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor.
Um Homem precisa de viajar para lugares que não conhece, para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser, que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos e simplesmente ir ver.”
ou mais significativas ainda as de Antoine de Saint-Exupéry;
“Cada um que passa na nossa vida, passa sozinho, pois cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra. Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, mas não vai só nem nos deixa sós. Leva um pouco de nós mesmos, deixa um pouco de si mesmo.”

Volto à estrada.
Não me sinto um peregrino, mas é com emoção que entro em Fátima.
Há uma áurea especial que envolve estas ruas.
Já à saída de Ourém, subindo os últimos quilómetros antes de aqui chegar, o vento sopra-me no rosto e invade-me um sentimento estranho de liberdade e felicidade. A respiração torna-se ofegante. Olho as minhas mãos abertas e vazias… a satisfação do caminho… Tenho a sensação de me desprender do corpo e vê-lo caminhar a meu lado…

“Uma paisagem conquista-se com as solas dos sapatos, não com as rodas de um automóvel”.
 Releio William Faulkner, dando-me conta da maior percepção do território; da sua urografia e características, que esta caminhada me tem permitido. Das suas nuances e contrastes. Da sua toponímia e glossários locais. Dos seus sofrimentos e angústias…
Depois de alguma chuva, o verão de São Martinho parece ter chegado a esta paisagem que se molda no branco calcário da Serra d’Aire e Candeeiros.
Uma serra consumpta, esventrada pelos caprichos dos exploradores de rocha ornamental… Uma serra que se alonga, fazendo lembrar uma onda gigante da Praia do Norte.

Desço a Porto de Mós, passo Alcobaça e por fim chego à Benedita.
O Eliseu e o António haviam-nos convidado para uma série de apresentações, com o intuito de falarmos não de viagens, mas da necessidade de partir; de fazer algo; de ir em busca do acaso e dos seus frutos.
Somos recebidos quase que com honras protocolares; conferência no externato às 12, entrevista para a rádio às 10, palestra no instituto de formação profissional à tarde, jantar com as mais altas individualidades da sociedade civil da Benedita às 20, enfim… dias verdadeiramente em cheio!
De entre muitas das nossas conversas, deu-se o acaso do António ser amigo do faroleiro do Cabo de Santa Maria em Faro – onde vamos terminar a viagem – e que talvez nos conseguisse proporcionar a experiência de lá pernoitar. O Eliseu, por seu lado, diz sempre ter tido vontade de fazer algo parecido – mas pela linha de fronteira – e a conversa leva-nos quase a um projecto conjunto…
Mas a nossa visita tinha reservada uma outra surpresa; quando nos falaram a primeira vez, não faziam sequer ideia que conhecíamos a Benedita. Daí que o espanto tenha sido geral quando lhes perguntamos pelo Jacob – um amigo que já não via desde os meus tempos de miúdo, quando ainda o meu pai por ali trabalhava;
- Mas vocês conhecem o Jacob?!. É meu vizinho! – Respondeu-nos o Eliseu surpreendido.
Revejo o Jacob mais de 20 anos depois!.. Perdeu o seu característico bigode à Dáli mas mantem toda a sua boa disposição e simpatia. Na Benedita não há quem não o conheça e respeite, e a sua vida confunde-se com o balcão atrás do qual sempre trabalhou.
Na manhã de Domingo – antes de voltarmos à estrada – faz questão de nos preparar um verdadeiro pequeno-almoço com pernil na brasa, febras, linguiças e vinho tinto, antes mesmo do abraço de despedida...

A viagem aproxima-se da costa. Do alto da Ribafria avistam-se as Berlengas no horizonte depois do almoço em família com o Eliseu.
Uma vez mais, a ida à Benedita provou a relevância de uma viagem destas. Acrescenta-lhe valor, sentido e um imenso agradecimento… 

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