A
terceira meta geográfica desta viagem atinge-se hoje. É uma oportunidade única
concedida pela meteorologia, que já prometeu não mo permitir para além das
próximas horas. Ainda esta noite nevará na Torre e a estrada
Piornos-Torre-Sabugueiro será fechada. O tempo amanhã também não estará para
veleidades, com um manto cerrado a encobrir o ponto mais alto do continente e
as temperaturas a baixar bastante. É melhor nem pensar em acampar por lá ou
mesmo pela Lagoa Comprida. Subirei ao Sabugueiro e procurarei boleia até à
Torre, visto que a descida se fará pela mesma estrada e não há qualquer
necessidade de repetir o trajecto a pé…
Ainda
que fria, a manhã acordou soalheira e a subida faz-se sem vento e com pouca
inclinação. Contorno vales onde voam pássaros abaixo das minhas passadas e sinto-me
um privilegiado pelo silêncio e pela vista – tão ampla que não cabe num único
olhar – que se apresenta na berma do abismo por onde subo.
Passo
a Cabeça do Velho aos 1200 metros. As vistas são cada vez mais assombrosas e a
paisagem vai gradualmente mudando; a vegetação rareia e vai dando lugar à
aridez da alta montanha e a rochas cada vez mais abruptas. Tenho a sensação de
estar a subir para a lua, com a serra do Caramulo em pano de fundo.
Nas
próximas duas semanas viajarei sozinho por ausência do meu irmão para
compromissos universitários. Se já assim as horas de estrada proporcionavam
imenso tempo de reflexão, agora mais ainda, e dou por mim a rebobinar as
últimas semanas, e a pensar em como é possível já ter estado, por exemplo, no
Sudão e não conhecer Trancoso… a ideia recorrente de que vamos muitas vezes
para fora sem conhecer o que está à nossa porta, nunca me pareceu fazer tanto
sentido…
Sabugueiro
é uma aldeia indistinta. Para ‘aldeia
mais alta de Portugal’ deixa bastante a desejar, e passo por ela com a
mesma indiferença com que ela me brindou nas suas casas caiadas, na ausência de
rusticidade ou no comércio de rua, insensível e vulgar…
A
boleia que me leva à Torre faz uma paragem na Lagoa Comprida, barrada por um
paredão que se ergue em degraus intransponíveis e que mais parece uma muralha
onde apenas faltam gigantes estátuas de guerreiros nas suas pontas… Neste país
parece fazer-se uma barragem em qualquer poça de água…
Um
frio cortante, vento forte e nuvens esparsas, assinalam na Torre o início do
contra-relógio para de lá sair. O tempo quer mudar e não há tempo a perder.
Aqui
na face norte da serra – onde o gelo que se forma durante a noite já não
derrete – não há vivalma nesta rampa que desce a Loriga e que chega a atingir
os 14% de inclinação. Dou por mim sarcasticamente a pensar, que deveria ser por
aqui que a Volta aa Portugal em Bicicleta
deveria passar…
Loriga
– encastrada no meio deste manto de pinheiros altos, que cobre a silhueta
ondulante das serras que se entrelaçam no vale como dedos de mãos apaixonadas –
aprumada, nobre e solene, parece esconderijo de sábios.
Uma
beleza dissimulada recorda-me Miguel Torga:
“O meu Portugal é de comunhões assim,
que me deixam calafrios na memoria do
corpo e tatuagens na carne da alma.”
Volto
a ficar com os bombeiros.
Sempre
achei que estes homens e mulheres – enquanto instituição – viviam algo
abandonados. Sujeitos ao mecenato ou obrigados de forma quase indigna, a
‘vender rifas nos semáforos’. Homens e mulheres – muitos deles voluntários –
que oferecem o seu tempo e sacrifício em prol da comunidade e por quem sempre
tive uma especial admiração.
Durante
os dias ‘aquartelado’ em Gouveia, ouvia-os falar de diversas ocorrências e
recordo com respeito a forma como comentavam as suas mais difíceis
experiencias, como a de terem de socorrer uma criança que viria a falecer num
acidente de viação… da forma como isso os trastornava e da força que
encorajavam entre si para superarem esses ‘traumas’.
O
meu reconhecimento por todos eles, vai muito para além do agradecimento por uma
noite passada em qualquer um dos seus quarteis!
Deixo
Loriga com destino a Penela onde tenciono passar o fim-de-semana.
À
medida que desço para o vale do Alva, um carvão asséptico nódoa a serra de
negro. Há um cheiro a terra queimada e as marcas do fogo estão bem visíveis. Só
ao chegar a Sandomil volta a haver cor. A estrada segue a par do rio como
varanda das casas que se erguem e perfilam na sua margem.
Chego
a Avô. A vila parece de uma outra fronteira. Tem ares de Espanha, mesmo que não
consiga perceber bem porquê. Nesta véspera de Todos os Santos, parece preparar-se
para a feira de amanhã, e o cheiro a frango assado emana de uma das tendas
nestas ultimas horas da manha.
Cruzo
o rio e um busto seiscentista chama-me a atenção à saída da ponte; Brás Garcia
Mascarenhas, militar e poeta, nasceu e morreu em Avô. Foi preso em Coimbra por
correspondência amorosa e evadiu-se para Espanha, tendo posteriormente viajando
por Itália e França. Foi novamente detido por desobediência ao
general-comandante da Beira e socorreu-se dos seus atributos poéticos para
impressionar o rei, que lhe devolveria a liberdade.
Olhando
a sua figura de pedra, o longo bigode e a pêra vática, recordo William Maugham
quando dizia que “só o amor e a arte
tornam a existência tolerável”.
Faço
uma última paragem em Serpins antes de chegar a Penela.
Uma
vez mais sou recebido com enorme entusiasmo por parte dos bombeiros locais, que
na figura do seu Comandante, só lamentam não os ter informado previamente, pois
teriam muito gosto em me poder mostrar a vila. Noto-lhes um orgulho genuíno na
sua terra e nas suas gentes ao falarem-me das suas origens; alegadamente, o
nome Serpins provem de ‘serpente’ e reza a lenda que se tratou de um cavaleiro –
que vendo o seu cavalo assustado por uma quando se preparava para cruzar o rio –
terá prometido erigir uma capela no local que Nossa Senhora assim designa-se. E
certo verão, durante uma chuvada, terá então nevado num único ponto da vila, e
lá se ergueu a capela que ainda hoje se pode encontra.
Serpins
é também o término do ramal da Lousã. Actualmente encontra-se encerrado para
obras de conversão para metro ligeiro, tendo já sido gastos cerca de 6 milhões
de euros sem que se vislumbrem perspectivas de reabertura da linha…
O Ramal
da Lousã foi inaugurado em 1885 e o projecto original compreendia o prolongamento
da mesma até Arganil, de onde seguiria para Santa Comba Dão – de forma a se
ligar à linha da Beira Alta – e para a Covilhã – para se ligar à da Beira
Baixa. A via foi aberta mas para lá de Serpins nunca circularam comboios. Contam-me
que é ainda possível vislumbrar num enorme rochedo a caminho de Arganil, os
trabalhos para a abertura de um túnel que nunca se chegou a concretizar…
O paradigma
da desertificação do interior do país é também aqui que se mede. Numa rede ferroviária
constantemente amputada e onde a própria noção de rede se vai perdendo,
retirando qualquer sentido à própria infra-estrutura.
O céu
turvo e o silêncio das horas que se precipitam para a noite cada vez mais cedo,
são a única companhia nestes últimos quilómetros antes de Penela. O inverno
prepara-se pelo caminho; corta-se lenha e apanha-se azeitona varejando oliveiras,
salpicadas de quando em vez pelo puníceo dos medronheiros.
As minhas
pernas parecem mecânicas. Como se se tivesses tornado dissociáveis do resto do
corpo cansado.
Entro
em Godinhela cruzando um riacho barrento. À porta de um café – de cada um dos
lados da mesma – cumprimento dois velhos sentados como guardiões de um templo,
e do tempo que lhes correu pelas faces gastas.
Chego
por fim a Penela. Sinto-me no limite. Nos últimos dias terei feito cerca de 140
quilómetros e é com dificuldade que subo estes últimos metros até ao recorte de
ameias e merlões do castelo que sempre me seduziu. Penela há muito que estava
nos meus destinos internos a visitar e é com satisfação que entro na vila,
suspirando pelo descanso dos próximos dias.
Penela é um local encantador e carregado de história. Se tiver tempo, visite também o Vale do Rabaçal, a freguesia, Espinhal (queda da Pedra Ferida)e Germanelo.
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