15 janeiro, 2013

A Casa do Cipreste



Raul Lino é um dos maiores nomes da arquitectura portuguesa do início do século XX. Foi Ministro das Obras Públicas, Superintendente dos Palácios Nacionais e membro fundador da Academia de Belas Artes. Ao longo de mais de 70 anos, debateu-se sobre a problemática da tradição na concepção das formas, “afirmando que a arte e a arquitectura são elas também um produto do homem e para os homens, com história, genealogia, características e funcionalidades próprias do espaço e do tempo em que se inserem e da comunidade para que são produzidas.” Deixou mais de 700 projectos e inúmeros textos sobre a arquitectura popular portuguesa.

Martinho é seu bisneto.
Aos 33 anos comprou a casa que Raul Lino havia desenhado para si em 1907, na altura com a mesma idade e em início de carreira.
Assente sobre uma pedreira – terrenos de família – a Casa do Cipreste apresentava inúmeros desafios: - Se conseguires fazer alguma coisa aí, podes ficar com ele. – Disseram-lhe.
Raul Lino desenho-a com base num piso principal, tratando os espaços sobrantes – abaixo e acima – com a dignidade que o local e a própria obra reclamam.
Ainda na rua, uma corda acciona um sino que ecoa por toda a casa. O portão verde abre-se para um corredor coberto – a passagem do público para o semi-público – aconchegando-se o espaço à medida que nos aproximamos da entrada, mais fechado e intimo. A porta é sóbria! Rígida. Abre-se com gravidade, em som e movimento solenes. No átrio, uma inscrição em persa do xeque Sadi de Xiraz: “Se tiveres de sobejo, sê liberal como a tamareira;… se nada tiveres para dar, então sê um Azad, ou Homem Livre, como o cipreste.”
A viagem ao coração da casa é compassada, passando agora para um corredor como um ‘tímpano’, que se abre e desemboca numa espécie de antecâmara e com vistas extraordinárias para a serra de Sintra.
À esquerda, Martinho abre-nos a porta da sala… tenho a sensação de entrar para um qualquer filme de início do século passado… O espaço – de forma octogonal – é enorme! Martinho serve-nos chá. Há um piano de cauda, mobília secular e um grande quadro prendendo-nos a atenção sobre a lareira que arde acolhedora numa das pontas da sala. Nele está representada a esposa de Raul, acompanhada de utensílios que ainda hoje repousam por ali… A Casa do Cipreste era residência de verão (em Sintra chega a fazer seis graus de diferença para Lisboa). Por essa altura, a família Lino vinha da capital trazendo consigo aquilo que considerava imprescindível para esses meses na serra. Numa caixa devidamente concebida para o efeito, o quadro de Columbano – oferecido a quando da inauguração da casa – era uma das peças que sempre acompanhavam a caravana.
O espaço foi desenhado para ser uma sala de música, possuindo inclusive uma caixa de ressonância resultante do espaço sobrante abaixo desta. Numa das paredes, o busto de Beethoven descansa num nicho adornado a folha de ouro, pintado pelo próprio Raul Lino. Ao seu lado, por uma das portas que ligam ao exterior, temos acesso a uma varanda arqueada. Nas plantas que Martinho me concede ver, percebe-se que esta não tem onde terminar, sendo o limite estabelecido pelo encontro com a pedreira.
Do outro lado do átrio ajanelado numa malha de vidro tosco, fica a sala de refeições. A entrada faz-se por três degraus, como quem sobe a um palco, ou não fosse este, ocasionalmente também espaço de actuações teatrais.
Raul Lino tinha especial cuidado com a acústica – todas as áreas são pensadas tendo em conta aquele que é um dos principais sentidos humanos. A forma oval e o tecto côncavo, garantem aqui não haver possibilidade de qualquer conversa paralela. É mais fácil escutar alguém à distancia do que quem se senta ao nosso lado…
Não há luz eléctrica na sala!.. Martinho distribui isqueiros para que acendamos todas as velas. Sobre a mesa, um grande candelabro central tem uma outra particularidade interessante; o suporte que o prende ao tecto é ele também uma chaminé, dissimulada e inteligentemente desenhada…
O génio de Raul Lino está por toda a casa: cada compartimento tem um pavimento distinto; O quarto principal – através de múltiplas passagens e entradas – funciona de forma circular, sendo possível percorrer todos os espaços (quarto, sala de banho, antecâmara, sanitários) sem voltar atrás; As janelas são cuidadosamente pensadas para criarem quase a ilusão de moldura para a paisagem; As escadas para o piso inferior, através de um jogo de azulejos, parecem mais pequenas quando se sobe do que quando se desce; E na porta para o jardim, um pequeno nicho é abrigo de Ferreirinhos, que ali vieram nidificar durante a construção e que ainda hoje ali regressam…

Martinho foi um anfitrião incansável! Um verdadeiro professor numa fantástica aula de arquitectura. E como se tudo isto não bastasse, leva-nos já noite dentro, à casa de praia nas Azenhas do Mar.
Raul Lino encomendou-a a um construtor de casas para pescadores, apenas com meia dúzia de aguarelas daquilo que pretendia.
Também aqui não há qualquer luz eléctrica e a primeira tarefa é acender todos os candeeiros a petróleo espalhados pela casa.
Há dois quartos no piso superior e uma cozinha com forno para cozer pão, uma sala de refeições, uma instalação sanitária com um balde como chuveiro e um quarto de criada no rés-do-chão. São dois pisos assentes sobre a falésia, sobre o precipício que leva ao mar agitado. A dois passos da porta que se abre sobre o Atlântico, só vislumbro água e espuma…
- A manutenção desta pequena casa é mais cara que a de Sintra. – Revela Martinho.

Voltamos a Sintra.
A manhã acorda envolta em nevoeiro e chuva miudinha. O cenário é perfeito ainda que não vislumbre o castelo que ontem cabia na perfeição entre a caixilharia do nosso quarto. Não apetece sair e caminhar até Cascais e a marginal até Lisboa já pareceu mais convidativa… O passar dos dias em viagem tem este poder: o de nos distanciar das regras, aproximando-nos do que é realmente relevante.

Seguimos directamente para Lisboa e para a companhia dos amigos.
O Tejo espreita por entre as ruas íngremes das varandas do Bairro Alto.

Cruzaremos o rio em direcção ao Montijo e voltamos à estrada. Há uma sensação de final – sempre tão estranha nas suas nuances de contentamento e melancolia.

O Alentejo é já ali…

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