Raul
Lino é um dos maiores nomes da arquitectura portuguesa do início do século XX.
Foi Ministro das Obras Públicas, Superintendente dos Palácios Nacionais e
membro fundador da Academia de Belas Artes. Ao longo de mais de 70 anos,
debateu-se sobre a problemática da tradição na concepção das formas, “afirmando que a arte e a arquitectura são elas também um produto do homem e para os homens, com
história, genealogia, características e funcionalidades próprias do espaço e do
tempo em que se inserem e da comunidade para que são produzidas.” Deixou mais
de 700 projectos e inúmeros textos sobre a arquitectura popular portuguesa.
Martinho
é seu bisneto.
Aos 33
anos comprou a casa que Raul Lino havia desenhado para si em 1907, na altura
com a mesma idade e em início de carreira.
Assente
sobre uma pedreira – terrenos de família – a Casa do Cipreste apresentava
inúmeros desafios: - Se conseguires fazer alguma coisa aí, podes ficar com ele.
– Disseram-lhe.
Raul
Lino desenho-a com base num piso principal, tratando os espaços sobrantes –
abaixo e acima – com a dignidade que o local e a própria obra reclamam.
Ainda
na rua, uma corda acciona um sino que ecoa por toda a casa. O portão verde
abre-se para um corredor coberto – a passagem do público para o semi-público –
aconchegando-se o espaço à medida que nos aproximamos da entrada, mais fechado
e intimo. A porta é sóbria! Rígida. Abre-se com gravidade, em som e movimento
solenes. No átrio, uma inscrição em persa do xeque Sadi de Xiraz: “Se tiveres de sobejo, sê liberal como a
tamareira;… se nada tiveres para dar, então sê um Azad, ou Homem Livre, como o cipreste.”
A
viagem ao coração da casa é compassada, passando agora para um corredor como um
‘tímpano’, que se abre e desemboca numa espécie de antecâmara e com vistas
extraordinárias para a serra de Sintra.
À
esquerda, Martinho abre-nos a porta da sala… tenho a sensação de entrar para um
qualquer filme de início do século passado… O espaço – de forma octogonal – é enorme!
Martinho serve-nos chá. Há um piano de cauda, mobília secular e um grande quadro
prendendo-nos a atenção sobre a lareira que arde acolhedora numa das pontas da
sala. Nele está representada a esposa de Raul, acompanhada de utensílios que
ainda hoje repousam por ali… A Casa do Cipreste era residência de verão (em
Sintra chega a fazer seis graus de diferença para Lisboa). Por essa altura, a
família Lino vinha da capital
trazendo consigo aquilo que considerava imprescindível para esses meses na
serra. Numa caixa devidamente concebida para o efeito, o quadro de Columbano –
oferecido a quando da inauguração da casa – era uma das peças que sempre
acompanhavam a caravana.
O
espaço foi desenhado para ser uma sala de música, possuindo inclusive uma caixa
de ressonância resultante do espaço sobrante abaixo desta. Numa das paredes, o
busto de Beethoven descansa num nicho adornado a folha de ouro,
pintado pelo próprio Raul Lino. Ao seu lado, por uma das portas que ligam ao
exterior, temos acesso a uma varanda arqueada. Nas plantas que Martinho me
concede ver, percebe-se que esta não tem onde terminar, sendo o limite
estabelecido pelo encontro com a pedreira.
Do
outro lado do átrio ajanelado numa
malha de vidro tosco, fica a sala de refeições. A entrada faz-se por três
degraus, como quem sobe a um palco, ou não fosse este, ocasionalmente também
espaço de actuações teatrais.
Raul
Lino tinha especial cuidado com a acústica – todas as áreas são pensadas tendo
em conta aquele que é um dos principais sentidos humanos. A forma oval e o
tecto côncavo, garantem aqui não haver possibilidade de qualquer conversa
paralela. É mais fácil escutar alguém à distancia do que quem se senta ao nosso
lado…
Não
há luz eléctrica na sala!.. Martinho distribui isqueiros para que acendamos
todas as velas. Sobre a mesa, um grande candelabro central tem uma outra
particularidade interessante; o suporte que o prende ao tecto é ele também uma
chaminé, dissimulada e inteligentemente desenhada…
O
génio de Raul Lino está por toda a casa: cada compartimento tem um pavimento
distinto; O quarto principal – através de múltiplas passagens e entradas – funciona
de forma circular, sendo possível percorrer todos os espaços (quarto, sala de
banho, antecâmara, sanitários) sem voltar atrás; As janelas são cuidadosamente
pensadas para criarem quase a ilusão de moldura para a paisagem; As escadas
para o piso inferior, através de um jogo de azulejos, parecem mais pequenas
quando se sobe do que quando se desce; E na porta para o jardim, um pequeno
nicho é abrigo de Ferreirinhos, que ali vieram nidificar durante a construção e
que ainda hoje ali regressam…
Martinho
foi um anfitrião incansável! Um verdadeiro professor numa fantástica aula de
arquitectura. E como se tudo isto não bastasse, leva-nos já noite dentro, à
casa de praia nas Azenhas do Mar.
Raul
Lino encomendou-a a um construtor de casas para pescadores, apenas com meia dúzia de aguarelas daquilo que
pretendia.
Também
aqui não há qualquer luz eléctrica e a primeira tarefa é acender todos os
candeeiros a petróleo espalhados pela casa.
Há
dois quartos no piso superior e uma cozinha com forno para cozer pão, uma sala
de refeições, uma instalação sanitária com um balde como chuveiro e um quarto
de criada no rés-do-chão. São dois pisos assentes sobre a falésia, sobre o
precipício que leva ao mar agitado. A dois passos da porta que se abre sobre o
Atlântico, só vislumbro água e espuma…
- A
manutenção desta pequena casa é mais cara que a de Sintra. – Revela Martinho.
Voltamos
a Sintra.
A
manhã acorda envolta em nevoeiro e chuva
miudinha. O cenário é perfeito ainda que não vislumbre o castelo que ontem
cabia na perfeição entre a caixilharia do nosso quarto. Não apetece sair e
caminhar até Cascais e a marginal até Lisboa já pareceu mais convidativa… O
passar dos dias em viagem tem este poder: o de nos distanciar das regras,
aproximando-nos do que é realmente relevante.
Seguimos
directamente para Lisboa e para a companhia dos amigos.
O
Tejo espreita por entre as ruas íngremes das varandas do Bairro Alto.
Cruzaremos
o rio em direcção ao Montijo e voltamos à estrada. Há uma sensação de final –
sempre tão estranha nas suas nuances de contentamento e melancolia.
O
Alentejo é já ali…
Sem comentários:
Enviar um comentário