Os
convites espontâneos são o melhor que nos pode acontecer em viagem, e foi mais
ou menos assim ao longo de todo o caminho. Para uma dormida ou simplesmente
para uma refeição, houve sempre alguém que estimou a nossa companhia. No Montijo
somos convidados da Helena e do João, que além de nos receberem por uma noite em sua
casa, tiveram a gentileza de preparar um verdadeiro manjar, e de nos presentear
com o almoço volante do dia seguinte.
Rumamos
a Setúbal numa súbita mudança de planos – tínhamos programado seguir por Águas
de Moura e Alcácer do Sal. Vamos a par da antiga linha, passando pelo apeadeiro
da Jardia ou a estação descoberta de Sarilhos, até ao Pinhal Novo onde esta
entroncava.
O
meu irmão distribui mais currículos na zona industrial de Palmela do que em
todo o tempo de viagem!
Pouco
antes da chegada a Setúbal, um carro pára na beira da estrada. Três indivíduos
– dois deles aparentemente na casa dos 20 anos e de boné ao lado – chamam-nos do outro lado da via. Desconfio! Não
respondemos e resolvemos seguir. O carro avança ligeiramente e volta a parar. O
mais velho dos três assoma fora do veículo e volta a chamar-nos com cara de
poucos amigos. Decido que talvez seja melhor enfrentá-lo ficando o meu irmão
deste lado da estrada;
-
Porque é que não vieste quando te chamei? – Inquire-me com olhar grave.
-
Levo-vos para a Serra [da Arrábida], fico-vos com tudo e deixo-vos lá
amarrados!.. nem sequer preciso da ajuda deles – atira-me, referindo-se aos
amigos que ficaram no carro.
Creio
não ter dito praticamente nada!.. talvez um simples e amedrontado: ‘óh!’
(…)
-
Estava a brincar! – Diz-me a rir estendendo a mão para que o cumprimente.
-
Como te chamas? – Pergunta-me. - De onde és? Que andas aqui a fazer?
O
meu raptor chama-me maluco quando lhe
digo que venho a pé. O meu alívio parece abafar o resto das suas palavras…
volta a entrar no carro e arrancam enquanto eu regresso para junto do meu
irmão. Tenho a sensação que nos vamos voltar a cruzar mais adiante… Pouco
depois, à saída de Volta da Pedra, irrompem pela porta de um café perguntando
se não pagamos nada;
-
Não temos dinheiro! Andamos a pé. – Respondo... Não mais os vimos…
Cruzamos
o Sado.
Em
Tróia, a Serra da Arrábida espreita por entre pinheiros, numa mata de areia que
se estende até ao mar convidativo de finais de Novembro. O dia prossegue
soalheiro ainda que com promessa de aguaceiros.
Há
um prenúncio de Alentejo nas distâncias infindáveis em recta entre povoações.
Não passa ninguém!.. depois da Comporta, apenas pequenos aglomerados de casas
fechadas, aguardando visitas de verão, emergem da beira da estrada.
Seguimos
para Grândola, entre chaparros e azinheiras que cobrem o caminho como um arco
de marcha popular.
Espera-nos
Zé Pedro – um benfiquista dos sete
costados, como se comprova pelo
nome do seu cão: Cosme Damião…
Cosme
é uma espécie de pitbull
hipocondríaco que tinha um olho a cair – e que o veterinário aconselhou a
remover, dando azo a que o dono o quisesse tapar com uma orelha tatuada com o
símbolo d’O Glorioso… – mas nem para
os devaneios do dono ele serve! – Diz-nos Zé Pedro em jeito de brincadeira… O
cão sobre de incontinência e outras disfunções que o levaram inclusive a roer
parte da própria cauda… Mas Zé gosta dele. E depois de nos instalar, ausenta-se
para ir à farmácia comprar os medicamentos para o pobre animal…
Zé
Pedro é promotor cultural e o seu apartamento mais parece um salão de festas,
com adereços e objectos saídos das mais malucas que posso imaginar… há
manequins, foguetões de cartão, uma enorme placa com a sigla Saloon à entrada, frascos com algo
semelhante a olhos, paredes coloridas com deuses hindus, enfim… um mundo de
fantasia... Zé Pedro parte amanhã para Marrocos, mas apesar da azafama,
recebe-nos em sua casa e tudo faz para nos conseguir hospedagem no dia
seguinte;
- Acho
que deviam ir à Azinheira dos Barros e visitar as minas do Lousal. Vou falar
com o presidente da junta de lá! É um tipo novo como nós. Tenho a certeza que
vos acolhe.
Ao
início da tarde do dia seguinte, às portas da Azinheira, soa o toque do
telefone do meu irmão. Do outro lado da linha, solicitam que esteja presente
amanhã em Aveiro para uma entrevista de trabalho… Não há como adiar! Temos de
encontrar uma forma de ele voltar já para cima. Já não há comboios a parar na
Azinheira dos Barros. Agora só em Grândola ou nas Ermidas e o das quatro já não
parece alcançável. Na Junta de Freguesia, Pedro – o presidente – assegura que
na falta de alternativa o levará a Grândola para o comboio das oito, mas antes
disso, ficamos de nos encontrar ao final da tarde, no café da aldeia, para uma
visita guiada ao Lousal.
As
minas do Lousal extraíam pirite e foram as maiores minas do pais durante os
anos 60 e 70. Possuíam cerca de 4000 funcionários que desciam até aos 500
metros de profundidade!.. Os primeiros registos de sondagem remontam aos tempos
Romanos. Operou durante 100 anos e seu encerramento em 1988 trouxe consigo dramáticas
consequências sociais, tendo começado a surgir os primeiros casos de droga e
alcoolismo entre a população mineira.
O
Lousal foi a primeira povoação do distrito de Setúbal a possuir luz eléctrica.
Era uma aldeia completamente auto-sustentável. Só em 2009 é que a água e a luz
passaram a estar ligadas à rede pública. Na aldeia tudo se pagava! Até o uso da
bicicleta…
A
aldeia estava dividida por bairros e classes sociais – distinções que ainda
hoje subsistem. Nos bairros operários, todos se tratam por ‘tu’, ao passo que as pessoas dos bairros ‘superiores’ continuam a
ser tratadas por ‘você’…
A
Junta de Freguesia tem feito um trabalho notável na recuperação deste espólio
mineiro. Despoluíram-se as águas – que atraíam pessoas convictas das suas
propriedades curativas; pois deixavam a pele morena, mesmo que esta depois
caísse toda! Muitos dos edifícios principais são hoje espaços de visita ou para
serviço da comunidade e até os próprios bairros operários se encontram a ser
alvo de intervenção.
Fico
encantado pela forma sedutora como o Pedro trata os problemas dos seus fregueses!.. Procura-os nos cafés e bate
às suas portas, e é cumprimentado por todos na rua. Uma verdadeira politica de
proximidade.
Num
desses encontros, conheço o Senhor Rita e a sua história:.. anos atrás foi ele
também numa viagem a pé. Pequena! Só até Setúbal… voltou passados oito meses,
depois de ter ido com os ciganos apanhar mirtilos para os Pirenéus...
Deixamos
o meu irmão no comboio de volta ao Porto.
Pelo
caminho debatemos a problemática da crise.
Pedro acredita que nos meios rurais não se sente tanto: aqui há a horta e a
casa da família que se encontra paga, espírito de solidariedade e entreajuda.
No entanto reconhece diferenças;
- Conheço
quem sempre tenha vivido com dificuldades ao ponto de vasculhar o lixo. E eles
hoje dizem-me que nem lá já se encontra o que quer que seja. – Confessa.
A
Junta de Freguesia vai fazendo o que pode no apoio ao mais carenciados, e neste
momento, disponibiliza inclusive um balneário com chuveiro de água quente,
aberto 24 horas por dia…
Já
sozinho, aconchego-me dentro do saco-cama no pequeno palco do salão de festas
da Junta… O som dos comboios embala a noite, coberta por um manto de estrelas e
lua cheia.
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