17 janeiro, 2013

Margem Sul e Além Tejo



Os convites espontâneos são o melhor que nos pode acontecer em viagem, e foi mais ou menos assim ao longo de todo o caminho. Para uma dormida ou simplesmente para uma refeição, houve sempre alguém que estimou a nossa companhia. No Montijo somos convidados da Helena e do João, que além de nos receberem por uma noite em sua casa, tiveram a gentileza de preparar um verdadeiro manjar, e de nos presentear com o almoço volante do dia seguinte.
Rumamos a Setúbal numa súbita mudança de planos – tínhamos programado seguir por Águas de Moura e Alcácer do Sal. Vamos a par da antiga linha, passando pelo apeadeiro da Jardia ou a estação descoberta de Sarilhos, até ao Pinhal Novo onde esta entroncava.
O meu irmão distribui mais currículos na zona industrial de Palmela do que em todo o tempo de viagem!
Pouco antes da chegada a Setúbal, um carro pára na beira da estrada. Três indivíduos – dois deles aparentemente na casa dos 20 anos e de boné ao lado – chamam-nos do outro lado da via. Desconfio! Não respondemos e resolvemos seguir. O carro avança ligeiramente e volta a parar. O mais velho dos três assoma fora do veículo e volta a chamar-nos com cara de poucos amigos. Decido que talvez seja melhor enfrentá-lo ficando o meu irmão deste lado da estrada;
- Porque é que não vieste quando te chamei? – Inquire-me com olhar grave.
- Levo-vos para a Serra [da Arrábida], fico-vos com tudo e deixo-vos lá amarrados!.. nem sequer preciso da ajuda deles – atira-me, referindo-se aos amigos que ficaram no carro.
Creio não ter dito praticamente nada!.. talvez um simples e amedrontado: ‘óh!’
(…)
- Estava a brincar! – Diz-me a rir estendendo a mão para que o cumprimente.
- Como te chamas? – Pergunta-me. - De onde és? Que andas aqui a fazer?
O meu raptor chama-me maluco quando lhe digo que venho a pé. O meu alívio parece abafar o resto das suas palavras… volta a entrar no carro e arrancam enquanto eu regresso para junto do meu irmão. Tenho a sensação que nos vamos voltar a cruzar mais adiante… Pouco depois, à saída de Volta da Pedra, irrompem pela porta de um café perguntando se não pagamos nada;
- Não temos dinheiro! Andamos a pé. – Respondo... Não mais os vimos…

Cruzamos o Sado.
Em Tróia, a Serra da Arrábida espreita por entre pinheiros, numa mata de areia que se estende até ao mar convidativo de finais de Novembro. O dia prossegue soalheiro ainda que com promessa de aguaceiros.
Há um prenúncio de Alentejo nas distâncias infindáveis em recta entre povoações. Não passa ninguém!.. depois da Comporta, apenas pequenos aglomerados de casas fechadas, aguardando visitas de verão, emergem da beira da estrada.
Seguimos para Grândola, entre chaparros e azinheiras que cobrem o caminho como um arco de marcha popular.
Espera-nos Zé Pedro – um benfiquista dos sete costados, como se comprova pelo nome do seu cão: Cosme Damião…
Cosme é uma espécie de pitbull hipocondríaco que tinha um olho a cair – e que o veterinário aconselhou a remover, dando azo a que o dono o quisesse tapar com uma orelha tatuada com o símbolo d’O Glorioso… – mas nem para os devaneios do dono ele serve! – Diz-nos Zé Pedro em jeito de brincadeira… O cão sobre de incontinência e outras disfunções que o levaram inclusive a roer parte da própria cauda… Mas Zé gosta dele. E depois de nos instalar, ausenta-se para ir à farmácia comprar os medicamentos para o pobre animal…
Zé Pedro é promotor cultural e o seu apartamento mais parece um salão de festas, com adereços e objectos saídos das mais malucas que posso imaginar… há manequins, foguetões de cartão, uma enorme placa com a sigla Saloon à entrada, frascos com algo semelhante a olhos, paredes coloridas com deuses hindus, enfim… um mundo de fantasia... Zé Pedro parte amanhã para Marrocos, mas apesar da azafama, recebe-nos em sua casa e tudo faz para nos conseguir hospedagem no dia seguinte;
- Acho que deviam ir à Azinheira dos Barros e visitar as minas do Lousal. Vou falar com o presidente da junta de lá! É um tipo novo como nós. Tenho a certeza que vos acolhe.

Ao início da tarde do dia seguinte, às portas da Azinheira, soa o toque do telefone do meu irmão. Do outro lado da linha, solicitam que esteja presente amanhã em Aveiro para uma entrevista de trabalho… Não há como adiar! Temos de encontrar uma forma de ele voltar já para cima. Já não há comboios a parar na Azinheira dos Barros. Agora só em Grândola ou nas Ermidas e o das quatro já não parece alcançável. Na Junta de Freguesia, Pedro – o presidente – assegura que na falta de alternativa o levará a Grândola para o comboio das oito, mas antes disso, ficamos de nos encontrar ao final da tarde, no café da aldeia, para uma visita guiada ao Lousal.
As minas do Lousal extraíam pirite e foram as maiores minas do pais durante os anos 60 e 70. Possuíam cerca de 4000 funcionários que desciam até aos 500 metros de profundidade!.. Os primeiros registos de sondagem remontam aos tempos Romanos. Operou durante 100 anos e seu encerramento em 1988 trouxe consigo dramáticas consequências sociais, tendo começado a surgir os primeiros casos de droga e alcoolismo entre a população mineira.
O Lousal foi a primeira povoação do distrito de Setúbal a possuir luz eléctrica. Era uma aldeia completamente auto-sustentável. Só em 2009 é que a água e a luz passaram a estar ligadas à rede pública. Na aldeia tudo se pagava! Até o uso da bicicleta…
A aldeia estava dividida por bairros e classes sociais – distinções que ainda hoje subsistem. Nos bairros operários, todos se tratam por ‘tu’, ao passo que as pessoas dos bairros ‘superiores’ continuam a ser tratadas por ‘você’
A Junta de Freguesia tem feito um trabalho notável na recuperação deste espólio mineiro. Despoluíram-se as águas – que atraíam pessoas convictas das suas propriedades curativas; pois deixavam a pele morena, mesmo que esta depois caísse toda! Muitos dos edifícios principais são hoje espaços de visita ou para serviço da comunidade e até os próprios bairros operários se encontram a ser alvo de intervenção.
Fico encantado pela forma sedutora como o Pedro trata os problemas dos seus fregueses!.. Procura-os nos cafés e bate às suas portas, e é cumprimentado por todos na rua. Uma verdadeira politica de proximidade.
Num desses encontros, conheço o Senhor Rita e a sua história:.. anos atrás foi ele também numa viagem a pé. Pequena! Só até Setúbal… voltou passados oito meses, depois de ter ido com os ciganos apanhar mirtilos para os Pirenéus...

Deixamos o meu irmão no comboio de volta ao Porto.
Pelo caminho debatemos a problemática da crise. Pedro acredita que nos meios rurais não se sente tanto: aqui há a horta e a casa da família que se encontra paga, espírito de solidariedade e entreajuda. No entanto reconhece diferenças;
- Conheço quem sempre tenha vivido com dificuldades ao ponto de vasculhar o lixo. E eles hoje dizem-me que nem lá já se encontra o que quer que seja. – Confessa.
A Junta de Freguesia vai fazendo o que pode no apoio ao mais carenciados, e neste momento, disponibiliza inclusive um balneário com chuveiro de água quente, aberto 24 horas por dia…

Já sozinho, aconchego-me dentro do saco-cama no pequeno palco do salão de festas da Junta… O som dos comboios embala a noite, coberta por um manto de estrelas e lua cheia.

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