Alguns comboios têm o condão de agitar o meu estado de espírito.
Quando entro na carruagem ucraniana na estação de Varsóvia com destino a Kiev, a moral volta novamente em alta… fazem-me companhia, três ucranianos de gerações distintas e que por isso mesmo, espelham realidades diversas sobre o seu próprio país, o seu passado e a sua relação com a Rússia. Depois de conhecer Hennadiy – presidente da fundação para os estudos regionais e internacionais de Polissa – e de lhe falar da minha paixão por comboios e de como sempre sonhara viajar nos comboios da antiga União Soviética, o companheiro de maior idade, que ostenta uma estranha tatuagem no pulso, reage entusiasticamente. Hennadiy diz-me que ele sente nostalgia por esse tempo e que isso é comum à maioria das pessoas da sua idade. Hennady mostra-se completamente em desacordo, justificando-se com o desenvolvimento económico do país nos últimos 10 anos, algo que não seria possível numa Ucrânia da CCCP.
Hennady regressa de um qualquer congresso em Varsóvia. Fala um inglês fluido e conversamos um bom bocado. Fica surpreso quando lhe falo dos meus planos de viagem e de todos os sítios que tenciono visitar na Ucrânia;
- Schors?!? – Pergunta-me surpreendido. – Que há lá que queiras ver?
- Velhas locomotivas. – Respondo…
A viagem prossegue e o comboio chega finalmente à fronteira.
À entrada todos se sentam nos respectivos compartimentos e há uma certa tensão no ar.
Um batalhão de mulheres policia irrompe pelo comboio.
Ao mostrar o passaporte, a agente de uniforme verde e salto alto parece desconfiada; – olha-me insistentemente e pede que ponha o cabelo atrás das orelhas e não sorria…
Cede por fim levando o passaporte consigo para carimbar, não mo devolvendo sem uma nova análise comparativa;
- Definitivamente ela gosta de ti! – Diz-me Hennady com graça.
O dia amanhece e da janela do comboio vejo os primeiros sinais de chuva. Em Kiev, volto a não ter ‘sofá’ onde ficar e o recurso a um hostel é inevitável. Reservo 4 noites no Dream Hostel, mesmo junto ao estádio que vai receber a final do campeonato da Europa de futebol no próximo ano. Está ainda em obras – como quase todo a cidade – mas será inaugurado no sábado com a actuação da Shakira...
O staff do hostel é extremamente prestativo e simpático, o ambiente é fantástico e encontro viajantes de todos os cantos do mundo; do Japão ao Chile, do Canadá à Austrália…
Alfredo é um jovem dentista de 25 anos que veio do Chile para percorrer toda a Europa e a facilidade de comunicação oferecida pelo espanhol, torna-nos companheiros de deambulação durante alguns dias.
Conheço também Uğur (lê-se simplesmente; ‘Ur’ – o ‘ğ’ é mudo). Vive numa pequena cidade no interior da Turquia e é linguista e vendedor de especiarias em grosso. Encontra-se em viagem à procura de novo poiso porque se sente decepcionado com o rumo do país e com as pessoas que nele vivem. Chega a dizer-me, para meu desgosto;
- Não confies nos turcos!
Não percebo exactamente qual a religião que professa, mas o interessante é que aparentemente, os seus princípios alicerçam na partilha. Nos poucos dias que passamos juntos em Kiev, não houve nada que não tenha disponibilizado a todos com quem se cruzava; comida, roupa ou até mesmo dinheiro…
Num desses dias fez-nos companhia um judeu rabino. Só comia kosher e vi-o várias vezes rezar no dormitório. Apesar da desconfiança inicial para com Uğur, rapidamente ultrapassam qualquer animosidade e foi extraordinário vê-los conversar e como Uğur se mostrou imediatamente disponível para conseguir o que fosse necessário para que ambos pudessem partilhar uma refeição sem que isso interferisse com os preceitos kosher.
Há de facto uma ‘possibilidade’ para este mundo caótico!..
Após 5 dias em Kiev estou de volta à estrada. Depois de Kharkiv – a antiga capital do país – dirijo-me para Donetsk, onde supostamente existe um museu ferroviário e onde Dima me espera em sua casa.
No comboio conheço Alexander, um jovem estudante de engenharia. Não fala quase nada em inglês e por isso mesmo decide ligar a uma amiga para fazer a tradução e servir de ponte entre nós. Oferece-me chá e presta-se a ajudar-me com todos os procedimentos a bordo…
Nada poderia dar mais sentido a esta viagem do que estas pequenas coisas… e elas acontecem tantas vezes!..
Na verdade não houve viagem de comboio em que não me tenham oferecido ou chá ou cerveja. Numa dessas vezes, um companheiro de viagem que se esforçava animadamente para falar inglês comigo, ofereceu-me uma cerveja e quando mais tarde retribuí com outra, mostrou-se confuso…
Dima vai buscar-me à estação às 6 e meia da manha. Quando lhe liguei no dia anterior comunicando a hora de chegada do comboio e perguntando pela melhor hora para nos encontrar-mos, não mostrou qualquer problema em ir buscar-me tão cedo. Dirigimo-nos para sua casa e rapidamente fico a saber que não há qualquer museu ferroviário e que também não haverá jogo do Shaktar este fim-de-semana. Basicamente, tudo o que tinha programado para estes dias…
Dima é urologista. Vive num antigo edifício da era soviética num bairro dos arredores de Donetsk. Mesmo sendo médico, aufere um ordenado irrisório e talvez por isso tenhamos passado tanto tempo conversando sobre as semelhanças e problemas socio-económicos dos nossos países. Para ‘afogar’ as nossas lamúrias, introduz-me numa noite de vodka – que os ucranianos bebem desmesuradamente – acompanhada de sumo de laranja e pão torrado com manteiga de alho, até altas horas da noite…
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