Johan é um ‘abridor de poços de minas’ –
se é que se pode dizer assim – e todos os meses, por duas vezes, faz a viagem
entre Svakopmund, onde agora reside – Johan é sul africano – e a mina onde a
sua empresa está a operar, nos arredores de Joanesburgo. São cerca de 2000
quilómetros que faz de uma assentada, sem qualquer paragem pelo meio. Quando me
encontra à saída de Keetmanshoop de polegar em riste, já está na estrada à mais
de seis horas e pelo menos mais 12 serão necessárias até chegar a Welkom, onde
o seu filho Pieter reside e onde também passarei a noite a convite de Johan,
assegurando-me que na manhã seguinte, depois da reunião madrugadora que tem na
mina, me deixará entregue à minha família em Joanesburgo.
Quando parou, não tive imediata
consciência para onde se dirigia, percebendo no entanto que me poderia deixar
em Karasburg ou com um pouco de sorte em Upington, já no outro lado da
fronteira, mas uma olhada pelo mapa fez-me perceber que se dirigia quase na
integra até Joanesburgo e que a pouca sorte que eu procurava, era afinal a
sorte toda reunida. Depois de horas de frustração sem conseguir qualquer
boleia, acabava de conseguir uma de mais de 1000 quilómetros que me levaria
directamente a Joanesburgo.
Johan pára para abastecer a carrinha
junto a um cruzamento e os nossos viandantes alemães deixam a caixa traseira
para prosseguir caminho até ao Fish River
Canyon, debaixo de um calor infernal. Os ares quentes do Deserto do Kalahari que se estende desde o Botswana
até ao encontro das fronteiras entre os três países são abrasadores. Um manto
de areias flamejantes sopradas por ventos que viajam desde o Canal de
Moçambique, arrastadas por quilómetros como línguas de fogo até à África do
Sul.
Johan é um excelente conversador e nem
por um momento durante aquelas horas intermináveis de viagem, se interrompeu o
diálogo. Johan ia-me explicando cada detalhe de uma paisagem que conhece pela
palma da mão, onde ele e a família já tiveram propriedades e onde algumas são
de tal maneira grandes que são necessários vários dias para as percorrer na
totalidade.
No entusiasmo da conversa, o acelerador
do carro parece levar pouca margem entre o pedal e o fundo, e não tarda muito a
que um radar de velocidade nos faça parar, inviabilizando qualquer tentativa de
persuasão sobre os escrupulosos policias… Johan é genuinamente boa pessoa, mas
igualmente herdeiro de um passado obscuro de uma mentalidade aviltada onde o ‘branco’
é um ser superior, e não deixa escapar o seu desprezo por estes policias que
pior do que o multarem, são negros…
Prosseguimos viagem.
Johan oferece-me o lanche que a sua
esposa preparou para ele enquanto me conta da cheias que ocasionalmente ocorrem
nesta zona, com a água a atingir alturas tal, que chega a cobrir na totalidade
as vedações das propriedades, deixando um rasto visível de destruição, como
aconteceu recentemente, com parte da linha férrea que segue a par da estrada a
ficar completamente arruinada.
Apesar de toda a rigidez do clima, este
parece ser o lugar ideal para um tipo específico de ovelhas de cabeça preta,
que Johan me explica ser uma defesa contra o sol impiedoso. Também tecelões
‘escultores’ parecem gostar deste clima, e os seus ninhos que crescem de cima
para baixo em forma de cogumelo e onde habitam centenas de indivíduos, pontuam
os postes de comunicação ao longo de toda a estrada.
Entre estas fronteiras tiradas a régua e
esquadro, há uma interminável terra de ninguém. Nestes quase 20 quilómetros sou
invadido por uma sensação estranha, um sorriso incontido, um pronuncio evidente
de um fim cada vez mais eminente. Os últimos seis meses desfilam-se-me em
retrospectiva. A última fronteira chega por fim. O último carimbo. Cheguei.
Consegui…
Sentimentos ambivalentes consomem-me o
espírito; o fim, o regresso, numa mistura de alegria e pena…
Mas a viagem prossegue.
Nas margens do rio Orange, fileiras infindáveis de videiras riscam as encostas ao
largo de Upington, que Johan se desvia para me mostrar, neste que é um dos
maiores e mais importantes rios da África do Sul e que pouco depois daqui, faz
fronteira natural com a Namíbia.
Alguns quilómetros depois alguém tenta trocar
um pneu na berma da estrada. Johan passa mas volta atrás assim que percebe que
o homem que sentado na estrada o tenta fazer, não tem uma perna.
Rapidamente trocamos o pneu e seguimos
viagem. Um céu que se carrega de púrpura mancha o azul pálido da tarde que se
esfuma ao ritmo do relato de mortes de amigos de Johan na estrada. O céu
fecha-se sobre relâmpagos silenciosos que reclamam tempestades distantes e a
noite toma o seu lugar.
Às portas de Welkom, a estrada é um
desfiladeiro entre paredes de milho. Plantações infindáveis estendem-se por
quilómetros como um celeiro por desfolhar que alimenta todo o país. Apesar da
escuridão, Johan vai parando aqui e ali para me mostrar estas marcas da
paisagem, como faz ao passarmos por uma das maiores barragens do país, que a
noite não deixa ver.
O dia desperta ainda noite e
dirigimo-nos para a mina onde Johan tem uma reunião às seis da manhã. Toda a
zona envolvente a Joanesburgo é um gigantesco filão de minério; com ouro,
ferro, carvão e outros, a serem extraídos às entranhas da terra, tornando-se o
berço de Joanesburgo e de cidades vizinhas.
Depois da reunião, Johan deixa-me por
fim numa zona comercial onde a minha família me virá buscar. A caminho de casa,
a entrada no núcleo da cidade é pontuado por montes que não são mais que o
resultado da actividade mineira e que o tempo e a vegetação vão lentamente
reclamando para si. Recentemente no entanto, um arrojado plano de reconversão
paisagística, tem procurado voltar a encher o labirinto de túneis das minas já
encerradas, com esse mesmo desperdício que repousa como montanhas artificiais
no exterior das mesmas.
Joanesburgo é à primeira vista, uma
cidade urbanisticamente interessante. De todo o tempo que lá passei, pareceu-me
sempre estranhamente agradável, apesar dos seus muros altos, com vedações eléctricas
e arame farpado, como uma coroa de espinhos que amarga e persistentemente,
recorda o medo com que se vive num país com uma elevadíssima taxa de
criminalidade. No entanto, a cidade é uma das mais verdes do mundo,
estendendo-se por uma área superior a 1500Km2 e toda essa mancha
arborizada é facilmente perceptível do alto das suas colinas.
A história de Joanesburgo confunde-se
com a história da corrida ao ouro, com o Apartheid
e com a história da nossa diáspora.
Tendo sido fundada em 1886, atingiu uma população
de 100 mil habitantes em apenas 14 anos, com o boato da existência de ouro na região
a atrair ‘garimpeiros’ de todo o mundo, o que de certa forma ajuda a explicar a
multiculturalidade deste país e dá outro significado à ideia de ‘nação arco-íris’.
Há uma grande comunidade portuguesa a viver
em Joanesburgo – muitos vindos de Moçambique aquando da independência do país –
e que segundo se conta, deram um contributo importante para a construção da
cidade. Também durante o período do Apartheid,
se consta que eram eles quem mais ajudava
a comunidade negra.
Foi logo em 1910 que o regime do Apartheid foi implementado, segregando brancos,
negros e indianos, numa catalogação estúpida em que o único critério era a cor
da pele… a estupidez era tal que compreendiam a existência de ‘camaleões’, ou
seja, pessoas que mudavam de cor de pele e que por isso mesmo podiam transitar
de categoria…
Apesar do fim do regime em 1990, a secreção
racial é ainda possível de se sentir nas ruas, se não de forma física, sem dúvida
de forma económica e social.
Durante aqueles dias, estive na eminência
de visitar Madiba (Nélson Mandela). A simples possibilidade de isso poder acontecer
era motivo suficiente para me preencher o espírito. Mandela é uma figura incontornável
da história da África do Sul e da luta pela igualdade racial. Um homem
inspirador! Infelizmente, o seu estado de saúde já não permite grandes
contactos e mesmo o simples gesto de assinar um livro é tarefa já difícil. A sua
esposa – Graça Machel – fez o favor por ele, e todo o interesse demonstrado no
meu projecto e a disponibilidade – mesmo não se tendo concretizado – para me
receber, foram uma recompensa inesperada.
O Shosholoza
Meyl – o comboio que liga Joanesburgo à Cidade do Cabo – está cheio para
meses… De alma cheia, compro novamente bilhete na companhia de autocarros de um
emigrante português e faço-me à estrada.
A África do Sul é um país mágico. Um país
de cor, de paisagens deslumbrantes, de prós e contras, mas que lentamente vai
construindo o seu caminho, assente na igualdade e na tolerância.
Um país para voltar!
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