Na outra margem, o irmão de Ali espera-nos no seu táxi junto ao ancoradouro
dos ferries. Veste uma jellabiya cinza
de ténues riscas brancas, imaculada e rica. Sob aquele ar frio da manhã, ao
cumprimentá-lo, sinto o vislumbre e a arrogância de um tempo que não é este; um
tempo de homens de caqui e chapéus de coco, de exploradores e aventureiros. Leva-nos
à estação no seu peugeot comprido,
anos 60 ou 70, volante grande e elegante e vidros de abrir com uma fita de cabedal.
Nos arredores da estação de Assuão, o dia levanta-se ao ritmo lento dos comerciantes, enevoados pelo calor do chá que se esfria nas suas mãos, debaixo dos seus bigodes, a um canto dos opifícios ainda por abrir. Há vendedores ambulantes de fruta, de pão, e fiadas de cadeiras vazias aguardando clientes nos cafés da avenida da estação. Vêem-se passar malas e gente em corrupio.
A meio caminho entre Assuão e Luxor, a cidade de Edfu alberga um dos maiores templos egípcios, dedicado a Hórus – o deus falcão do céu e do sol.
A viagem é curta. A estação – a uns quatro quilómetros do centro – é um lugar tranquilo. Ouve-se o chilrear da passarada depois da partida dos comboios. O Nilo, espreita para lá dos degraus do pórtico ocidental, lembrando uma Varanasi onde nunca estive.
Descemos à rua. O almoço é servido num pequeno restaurante à saída. Não há ninguém – ainda é cedo – apenas o miúdo que dá a volta aos frangos raquíticos, prisioneiros num assador de vidro. A ventoinha trabalha apática sobre as nossas cabeças.
Depois de infrutíferas negociações por um táxi até ao templo, resolvemo-nos pelo miniautocarro – sempre prático e mais barato. Descemos pressionados pelo caótico trânsito daquela rotunda oval, entupida de carros, miniautocarros e charretes para turistas indecifráveis. O resto faz-se a pé.
Às portas do templo, no imenso parque de estacionamento, não se vislumbra ninguém… os poucos comerciantes que restam aguardam o regresso dos autocarros repletos de turistas… uma espera angustiante e poeirenta. Lá dentro, uma brigada de homens e máquinas vasculham o solo, suponho eu, em busca de novas evidências.
Os templos egípcios têm sempre o condão de nos impressionar; ora pela dimensão, ora pelo ornamento, ora pela ancestralidade destes gigantes de pedra. Descrevê-los é uma utopia a que não me proponho. É preciso vê-los!
No regresso à estação, deito o olhar às águas calmas do rio… há juntas de bois a beber na margem. Pequenos barcos e agricultores de calças arregaçadas em campos vizinhos sob um sol infatigável…
O Nilo é o leal companheiro destas travessias. Corre bonançoso sempre à esquerda da nossa janela. O Nilo que dá vida a um deserto que se transforma em campos verdejantes e plantações imensas de cana-de-açúcar, pontilhadas de palmeiras, garças, jellabiyas acocoradas e burros diligentes.
Luxor é um resumo do Egipto; a antiga capital faraónica é lugar de templos, túmulos, museus e aldeias desalojadas pela força de um turismo de massas. O espelho de uma cidade voltada quase em exclusivo para o turismo. Em cada rua há uma mão cheia de hotéis, cafés e restaurantes. É talvez o sítio no Egipto onde é mais fácil encontrar bebidas alcoólicas e onde o assédio sobre o turista é mais feroz. Voltar não é propriamente uma predilecção, mas Luxor é definitivamente um lugar obrigatório.
Ao longo da marginal, junto ao Templo de Luxor, os desocupados condutores de charretes e felucas, procuram à vez convencer os poucos turistas. Um processo repetitivo e cansativo, capaz de roubar o sério à mais pachorrenta das almas… os tempos são difíceis e há que tentar.
Percorrido o ‘obstáculo’ em direcção a norte, Karnak é um oásis de paz.
Recordo perfeitamente ter andado por aqui dois anos antes; uma avenida larga com separador central ajardinado, padarias e pequenas bancas de falafel onde almocei e onde procuro voltar a fazê-lo.
É nestes pequenos recantos que se encontra a mais genuína das hospitalidades. Nestes lugares de aparência insalubre e gente envergonhada. Nestas portas que se abrem apenas para um sorriso e não mais que uma foto de família. Nestes lugares onde um falafel custa um falafel e não três ou quatro ou até mesmo um e meio que seja. Nestes lugares onde nos sentamos sem que pareça de sentar, mas que rapidamente dispõem para melhor nos servir. Nestes lugares em que sem saberem, nos dão de borla aquilo que mais buscamos: ser apenas um deles entre eles.
Nos arredores da estação de Assuão, o dia levanta-se ao ritmo lento dos comerciantes, enevoados pelo calor do chá que se esfria nas suas mãos, debaixo dos seus bigodes, a um canto dos opifícios ainda por abrir. Há vendedores ambulantes de fruta, de pão, e fiadas de cadeiras vazias aguardando clientes nos cafés da avenida da estação. Vêem-se passar malas e gente em corrupio.
A meio caminho entre Assuão e Luxor, a cidade de Edfu alberga um dos maiores templos egípcios, dedicado a Hórus – o deus falcão do céu e do sol.
A viagem é curta. A estação – a uns quatro quilómetros do centro – é um lugar tranquilo. Ouve-se o chilrear da passarada depois da partida dos comboios. O Nilo, espreita para lá dos degraus do pórtico ocidental, lembrando uma Varanasi onde nunca estive.
Descemos à rua. O almoço é servido num pequeno restaurante à saída. Não há ninguém – ainda é cedo – apenas o miúdo que dá a volta aos frangos raquíticos, prisioneiros num assador de vidro. A ventoinha trabalha apática sobre as nossas cabeças.
Depois de infrutíferas negociações por um táxi até ao templo, resolvemo-nos pelo miniautocarro – sempre prático e mais barato. Descemos pressionados pelo caótico trânsito daquela rotunda oval, entupida de carros, miniautocarros e charretes para turistas indecifráveis. O resto faz-se a pé.
Às portas do templo, no imenso parque de estacionamento, não se vislumbra ninguém… os poucos comerciantes que restam aguardam o regresso dos autocarros repletos de turistas… uma espera angustiante e poeirenta. Lá dentro, uma brigada de homens e máquinas vasculham o solo, suponho eu, em busca de novas evidências.
Os templos egípcios têm sempre o condão de nos impressionar; ora pela dimensão, ora pelo ornamento, ora pela ancestralidade destes gigantes de pedra. Descrevê-los é uma utopia a que não me proponho. É preciso vê-los!
No regresso à estação, deito o olhar às águas calmas do rio… há juntas de bois a beber na margem. Pequenos barcos e agricultores de calças arregaçadas em campos vizinhos sob um sol infatigável…
O Nilo é o leal companheiro destas travessias. Corre bonançoso sempre à esquerda da nossa janela. O Nilo que dá vida a um deserto que se transforma em campos verdejantes e plantações imensas de cana-de-açúcar, pontilhadas de palmeiras, garças, jellabiyas acocoradas e burros diligentes.
Luxor é um resumo do Egipto; a antiga capital faraónica é lugar de templos, túmulos, museus e aldeias desalojadas pela força de um turismo de massas. O espelho de uma cidade voltada quase em exclusivo para o turismo. Em cada rua há uma mão cheia de hotéis, cafés e restaurantes. É talvez o sítio no Egipto onde é mais fácil encontrar bebidas alcoólicas e onde o assédio sobre o turista é mais feroz. Voltar não é propriamente uma predilecção, mas Luxor é definitivamente um lugar obrigatório.
Ao longo da marginal, junto ao Templo de Luxor, os desocupados condutores de charretes e felucas, procuram à vez convencer os poucos turistas. Um processo repetitivo e cansativo, capaz de roubar o sério à mais pachorrenta das almas… os tempos são difíceis e há que tentar.
Percorrido o ‘obstáculo’ em direcção a norte, Karnak é um oásis de paz.
Recordo perfeitamente ter andado por aqui dois anos antes; uma avenida larga com separador central ajardinado, padarias e pequenas bancas de falafel onde almocei e onde procuro voltar a fazê-lo.
É nestes pequenos recantos que se encontra a mais genuína das hospitalidades. Nestes lugares de aparência insalubre e gente envergonhada. Nestas portas que se abrem apenas para um sorriso e não mais que uma foto de família. Nestes lugares onde um falafel custa um falafel e não três ou quatro ou até mesmo um e meio que seja. Nestes lugares onde nos sentamos sem que pareça de sentar, mas que rapidamente dispõem para melhor nos servir. Nestes lugares em que sem saberem, nos dão de borla aquilo que mais buscamos: ser apenas um deles entre eles.
Atravessamos o rio, a aldeia de Nova Gurna e os Colossos de Memnon. A bilheteira para muitas das atracções aqui existentes fica no cruzamento imediato. Tempos houve em que daqui se podia admirar uma aldeia inteira. Os ‘nobres’ falecidos, sepultados sob o burgo em túmulos mais ou menos sumptuosos, ‘expulsaram’ a maioria dos residentes a pretexto de um turismo de massas, tende sido realojados, longe daqui e sob promessas que nunca se viriam a cumprir. Sobram algumas casas; brancas, amarelas, azuis e lilases, como recordação da paleta que terá sido outrora aquela colina. Nas redondezas, ao largo das suas moradas de adobe, os miúdos jogam à bola indiferentes à minha inquietude.
Dois anos antes havia escapado a uma visita minuciosa, mas desta vez, o distinto Templo Mortuário de Hatchepsut seria destino obrigatório. Iria avistá-lo depois da subida às montanhas que abrigam o Vale dos Reis e lhe servem de encosta. Uma subida de cortar o fôlego, não pela dureza do caminho, mas pelas fantásticas e infindáveis vistas que proporciona sobre o vale do Nilo, deixando bem patente a vincada separação entre o ocre do deserto e o verde das suas margens.
Desço ao templo. A sucessão de patamares que o caracteriza não tem paralelo com qualquer outro edifício da sua era. Contudo, para lá daquilo que a vista sem bilhete oferece, o templo é um pequeno desencanto; não há galerias nem antecâmaras, apenas os desaparecidos turistas aproveitando as tréguas do sol para se juntarem todos e no mesmo instante naquele lugar. Afinal também os há por aí… de saias curtas e decotes indiscretos numa aparente insensibilidade e sempre com as questões mais pertinentes:
- Quantas mulheres tem? – Pergunta um deles a um dos guardas ali presente…
Há mais um dia a caminhar vertiginosamente para o fim.
Subo ao terraço de um bar. Agrada-me esta posição de espectador. Sem que dêem por mim. Sem que possa influenciar sequer um sorriso. Fico a ver quem passa; os jogadores de gamão nas esplanadas; a multidão que desce do ferry; os crentes ajoelhados no jardim para a oração do pôr-do-sol.
A vista estende-se largamente até à outra margem. Um skyline de minaretes, obeliscos, colunas de templos e cúpulas imponentes de igrejas coptas, num aparente desafio à maioria muçulmana.
Nessa mesma noite, já a caminho do hotel, somos atraídos pelo ruído que atravessa uma das ruelas que lhe são paralelas. Há um recanto engalanado de onde ecoa uma música estridente. Talvez um casamento. Aproximamo-nos curiosos e somos rapidamente convidados à festa. Não se trata do casamento, mas dos festejos que o antecedem – uma espécie de despedida de solteiro.
Não há sinais da noiva. É-nos dito que se ausentou pouco antes com as irmãs para os seus preparos. Aqui não há misturas: homens de um lado, mulheres de outro, e um palco a separá-los. Mas não se pense que é intransigente que assim seja.
Trazem-nos sumo. De pacote. Sim! Porque aqui não se festeja até à embriaguez.
Os homens dançam de um lado – braços levantados, cintura em constante movimento e mãos que se agitam como quem enxota – as mulheres dançam do outro. Vestem laranjas e vermelhos ou o comprometido negro de casadas. Uma delas equilibra um prato de velas sobre a cabeça. De quando em vez, abeiram-se do palco e soltam um grito festivo sacudindo a língua.
A música não cessa. Há uma alegria genuína estampada nos rostos em festa. O noivo – de jallabiya branca, sapato engraxado e uma espécie de manilha vermelha que lhe dá a volta ao anelar – é carregado em ombros pelo irmão no meio daquela pequena multidão de homens dançantes.
Somos os primeiros a desistir. Mas a festa – que já não começou hoje – continuará amanhã. E nós somos já parte dos convidados.
No último dia por estas paragens do sul, rumamos a Dendara – arredores de Qena, a pouco mais de 70 quilómetros a norte de Luxor e onde o Nilo flecte abruptamente para oeste, nesta espécie de ‘joelho’ que faz no seu caminho para norte.
É quinta-feira. A agitação nas estações de comboios e autocarros é frenética, com uma imensidão de gente que parte para os seus destinos de fim-de-semana.
Em Qena, à saída da estação, por entre uma confusão de malas e passageiros apressados, interrogo um polícia sobre como seguir para Dendara. Esboça mal o inglês. Encaminha-nos para a paragem de autocarro e aguarda connosco. Noto repousarem sobre nós alguns olhares, mas nem por isso coactivos:
- Vão para onde? – Pergunta um deles.
- Dendara.
- Eu posso levar-vos.
Fady é o responsável de vendas de um grupo de distribuição de produtos alimentares de marcas internacionais. Nasceu em Alexandria mas mudou-se para Qena por força do trabalho. Um trabalho remunerado, bem acima da media dos padrões egípcios.
- Hoje ainda vou para Hurghada. Eu e a minha esposa vamos lá comprar um apartamento. – Revela.
Fady é de minoria copta. Mostra uma a cruz tatuada no pulso.
- As pessoas acham que vivemos em conflito com os muçulmanos, mas isso é falso. Os meus vizinhos são muçulmanos. Nunca tive qualquer problema com eles ou com quem quer que fosse por culpa da religião. Sei que de quando em vez há algumas escaramuças no Cairo, mas não são representativas de qualquer animosidade entre nós. São apenas actos terroristas de pequenas facções. – Atira.
Fady deixa-nos à entrada do templo.
Uma vez mais, é impossível deixar de notar a ausência de turistas. Há dois ou três funcionários no átrio a dormitar sentados…
O templo de Dendara (dedicado à Hator – deusa do amor, da beleza, da música, da maternidade e da alegria) é um dos mais bem preservados do Alto Egipto – não fosse a arrogância de um tempo, em que a representação de figuras humanas era encarada como insultuosa para Alá, levando à lapidação de muitos dos altos relevos que cobrem as paredes do delubro. Apesar de tudo – e por mais templos que possamos ter visitado – Dendara é um caso surpreendente; conserva cores vivas, padrões belíssimos e um intrincado esquema de salas hipostilas, capelas, antecâmaras e átrios exteriores. É o primeiro templo em todo o Egipto onde tenho a oportunidade de visitar a cripta e o terraço da cobertura.
No regresso à estação de Qena, entre o bate-boca pelo preço do autocarro e a troca de macarrão com tomate e queijo por bolos de mel, atento no casario colonial; nas sacadas ornamentadas, nos frontões, nas portadas ripadas em madeira, por detrás de onde imagino mulheres esguias, cabelo ondulado cobrindo o ombro, de fina roupa interior branca camufladas entre as cortinas, elegante e aberto roupão de seda e saiote debruado a renda, fumando cigarrilha sob o rodopio da ventoinha, num tempo que não este.
De volta a Luxor, o sol põe-se por detrás das montanhas do Vale dos Reis, dando lugar ao chamamento do muezzin. Do terraço do nosso hotel, vêem-se acender as florescentes lâmpadas que coloram os minaretes; há verdes, rosados e azuis, em contraste com a desarrumação monocromática que reveste todas as coberturas a perder de vista, camadas de entulho e parabólicas empoeiradas.
O Cairo, espera-nos já amanhã.
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