30 setembro, 2012

Por Terras do Gerês


Cevide!
Estamos na ponta norte de Portugal. Depois de semanas de sol e calor, o Outono que há dias chegou trouxe com ele a chuva, e bastou que nos fizéssemos ao caminho para que ela nos brindasse com a sua presença, como uma lembrança subtil da dificuldade daquilo a que nos propomos.
Ainda colocamos as mochilas às costas, quando somos imediatamente reconhecidos por um ‘Cevidense’ que descendo à aldeia na sua scooter, nos revela ter tomado conhecimento da nossa viagem através do facebook e que, sendo membro de um grupo de ‘Amigos de Cevide’, nos deseja as maiores felicidades, alegrando-se com a nossa presença naquele pequeno lugar.
Daqui em direcção a Lamas de Mouro o caminho faz-se quase sempre a subir. Dos 15Km até lá, apenas os últimos dois ou três são planos ou com uma ligeira inclinação descendente. O rio Minho vai ficando para trás à medida que subimos as suas veredas salpicadas de ramadas nestas encostas verdes que se espelham com Espanha.

O Sr. Manuel desce em direcção a S. Gregório no seu tractor azul. Pára à nossa passagem e faz questão de nos cumprimentar e desejar boa sorte, referindo ter-nos visto na televisão durante o fim-de-semana. Alguns quilómetros mais à frente, paramos no alpendre de acesso à garagem de uma senhora que, ao nosso pedido de água, nos refere ter pouca mas que mais adiante há uma fonte onde podemos abastecer-nos… eu que sempre aprendi que água não se recusa a ninguém!..
A vida por estes lados não parece fácil. Há queixas de isolamento e as comunicações móveis nem sequer são possíveis, pois a única rede que por aqui se encontra é a dos vizinhos espanhóis. Ao longo da estrada, muitas são as casas fechadas, de persianas completamente descidas e que recordam a triste sina destas gentes obrigadas a emigrar. A população residente é idosa e dedica-se às lides do campo, independentemente da chuva ou do frio.

São umas seis da tarde quando chegamos a Lamas de Mouro. O parque de campismo encontra-se encerrado à espera de um novo concessionário e só nos resta encontrar um bom lugar para montar a tenda aproveitando as tréguas da chuva. Trocamos de roupa no N&B – um café/snack-bar com internet, que mais parece um oásis neste deserto verdejante – e, por indicação do guarda de serviço do Parque (PNPG), acampamos nas traseiras do centro de apoio a visitantes.
Antes de dormir, e ainda com alguma roupa molhada, vislumbro nos focos exteriores do edifício, uma possibilidade de a secar; sendo embutidos e com uma reentrância que lhe confere uma luz vertical – quase como uma caixa – coloco duas t-shirts e umas calças sob o calor dos três focos da parede sul. Apesar da chuva intensa que se abateu durante a noite, a roupa encontra-se seca na manhã seguinte...

A manhã desperta ainda chuvosa, mas não temos grande alternativa; não estamos num parque de campismo, não temos rede telefónica e ficar aqui – e nestas condições – também não é opção.
Levantamos acampamento e resolvemos seguir caminho. O parque de campismo mais próximo fica a 45Km daqui e não parece haver alternativa senão fazer uma ‘pequena batota’. Com a chuva a cair assim, teremos de apanhar boleia para chegar ao parque quanto antes. Parece-me preferível a batota, num percurso que já efectuei a pé anteriormente, do que uma gripe que nos pare já por completo. Não faz qualquer sentido caminhar debaixo de chuva e não sendo possível ficar onde estamos, seguiremos então assim mesmo.
A primeira boleia leva-nos até à Peneda. Na margem esquerda do rio com o mesmo nome, sob a chuva intensa que não permite sequer uma foto, o santuário, a sua escadaria monumental e a encosta rochosa de onde jorram cascatas de água, proporcionam um postal de inverno magnífico.
Idosas nas suas capas de chuva guiam o gado em direcção a casa, quando o Sr. Filipe – um ‘engenheiro dessas coisas da luz’ (ainda que não o aparente), como nos revelam no café onde nos deixa – nos leva até Rouças, fustigados pela metralhar da chuva impiedosa na cara, na parte de trás da sua carrinha de caixa aberta.
Um nevoeiro persistente cobre a montanha ocultando os seus cumes. O som das encostas é o badalar das cabras que por ali apascentam, e que formam um belo presépio quando combinadas com pequenas casas ladeadas por um riacho, num qualquer vale de tapete verde.
À saída de Rouças, a Sr.ª Glória e o marido – um casal seguramente na casa dos 70 – pára para nos oferecer boleia até ao Soajo.
A Sr.ª Glória revela – ainda que com bastante cautela, certificando-se primeiro qual o grau de parentesco entre nós – que nos vira na televisão e que apenas por isso parou. Ainda assim faz questão de perguntar se podem ‘fazer confiança’ em nós, pois que por estes dias não se pode confiar em ninguém…
- Fazem-me lembrar os meus netos – diz-nos emocionada.
A Sr.ª Glória invoca todos os santos para nossa protecção e antes de nos deixar, faz questão de nos presentear com uma nota, que apesar da nossa constante recusa, faz depositar na caneca que trago dependurada no exterior da mochila.

A chuva parou e aproveitamos para retomar a caminhada.
Depois dos espigueiros do Soajo, seguimos ao encontro do rio Lima onde, à sua passagem, escondida pelas encostas escarpadas, nos deparamos com a velha central hidroeléctrica do Lindoso, um edifício sóbrio e interessante, que mais parece saído de um qualquer filme de espionagem dos anos 30 ou 40.
Voltamos a subir. O parque de campismo já não fica longe, entalado entre os rios Tamente e Froufe, ambos afluentes do Lima.
A chuva volta a comtemplar-nos, o que a continuar assim, nos fará parar aqui por mais um dia.

Depois de um dia de descanso forçado devido à chuva, a manhã deste quarto dia desperta animadora. À medida que vamos subindo em direcção a Germil, o sol que se apruma vai recolhendo a sombra à nossa passagem. Um céu que se mancha de azul depois de dias carregado de negro.
Apesar de ainda estarmos em Setembro, por estas encostas sombrias já é comum ver-se fumegar das chaminés destas casas que se mostram através de uma ramada que lhes faz frente e me lembra tempos idos em casa dos meus avós.
O silêncio destes vales escondidos entre curvas e contra curvas, é apenas cortado pelo correr de riachos que se precipitam montanha abaixo e pelo troar dos sinos nas aldeias vizinhas, que acompanham o passo das horas com badaladas marianas.
Na aldeia granítica e bem preservada de Brufe, é apenas o ruído de um pequeno regueiro que nos dá as boas vindas a esta aldeia onde apenas ilustres personagens se parecem dirigir nos seus carros de alta cilindrada, para um almoço no seu tão famigerado restaurante com vista sobranceira sobre o vale.
Seguimos em direcção à barragem de Vilarinho das Furnas. A aldeia que lhe dá nome encontra-se submersa pela albufeira desde 1971, sendo no entanto possível um pequeno vislumbre das suas ruínas quando o caudal da mesma se encontra vazo. Uma aldeia comunitária que remontava a tempos imemoriais e que se ‘afundou’ como outras sob a promessa de um progresso difícil de descortinar.
Á medida que descemos, o ziguezaguear da estrada que se prolonga e se avista do outro lado do vale, faz-me lembrar os fjords da Noruega, onde também, para se fazer o equivalente a um ou dois quilómetros em linha recta, é necessário andar uma boa dezena deles. Não há renas mas há cavalos a pastar na berma da estrada e apenas o vale não é mar…

De Campo do Gerês seguimos em direcção à pequena aldeia da Ermida.
A vista do alto da serra sobre a vila do Gerês é assombrosa! Pontes e rios numa imensidão a perder de vista. A própria vila é uma viagem no tempo e no espaço, fazendo lembrar uma qualquer estância termal alpina, com os seus chalés e edifícios palacianos, lembrando hotéis de charme de um tempo de cartolas e espartilhos.
À saída da vila, a estrada que sobe até à aldeia enche-nos as narículas ora de um odor a bosta ora de um perfume medicinal a eucalipto… Bois de longos cornos retorcidos param espantados à nossa passagem. A estrada sobe e desce, recordando penosamente que a pé, custa tanto uma coisa como a outra…
Chegamos à Ermida e ao parque de Campismo do Sr. Carlos e da Dona Gracinda, que apesar de viverem em Lisboa, descobriram na Ermida – terra natal da Dona Gracinda – o refúgio que há muito procuravam.
A Ermida, como nos contam, é seguramente uma das últimas aldeias comunitárias do país. Aqui ainda se ‘convoca o povo’ para arbitrar de qualquer assunto relativo à aldeia e que se resolve de uma só vez com quem estiver presente, sem mais delongas ou possibilidade de contestação, qual reunião de condomínio…

Adoro a luz do fim de tarde que se dilata para lá da sombra que me cobre nesta esplanada com vista para a montanha, sob um céu que se limpa e que faz antever um belo dia para amanhã…

3 comentários:

  1. Preparem-se que vão encontrar muito envelhecimento e desertificação. Gostei particularmente do que contas da passagem em Lamas de Mouro. Aquele café é realmente um oásis. Estive lá a consultar a internet num frio dia de Novembro, enquanto uma cadela que me seguiu 20 klms esperava por mim.
    Abraço e boa continuação!

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  2. Maravilhada com a vossa descrição dessas terras que conheço bem e que gosto muito!
    Boa viagem

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  3. O prazer de vos receber no Ermida Gerês Camping, foi nosso.
    Grande abraço e continuação de uma excelente aventura.

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